segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Merda ou adubo?

Uma das formas de entender a Espontaneidade e o que a bloqueia é observar quando pedimos a alguém que diga algo qualquer. Muito dificilmente essa pessoa dirá imediatamente algo. Ou hesitará perguntando "o que?" ou travará na resposta. Perguntando o que se passa imediatamente antes da resposta ouviremos quase certamente que a pessoa quer dar uma resposta correta. Isto é o grande bloqueio da Espontaneidade: querer ter certeza previamente. Se lembrarmos ao membro do grupo que a resposta dele é um tijolo na construção do saber coletivo o alívio vai-se produzindo. "Não me sinto bloqueado". Quando pisamos em fezes, dizemos Merda e nos enraivecemos. Quando temos um sítio saímos para comprar esterco. Merda e adubo guardam as mesmas propriedades organolépticas: cor, cheiro, textura e origem. O que os difere é a utilidade. Um é útil e desejável, outro é ofensivo e sujo.  Em um grupo todas as ações acontecidas podem ser vistas como merda ou adubo. Se nos preocupamos com erro, acerto, plano, com certeza veremos merda em algo acontecido ou não acontecido.Se aproveitamos a chance para a correção de rumo, reiniciar algo, redirecionar o foco, mudar o ritmo, certamente estamos, alquimicamente, transformando merda em adubo.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Reflexões sobre uma palavra

Muito frequentemente precisamos usar algumas palavras para falar do que acontece no palco psicodramático. Dizemos, então, dramatização ou encenação. Mais raramente e, sempre com cuidado, a palavra representação. Dramatizar, encenar, representar ou mesmo teatralizar, são sinônimos, caso estejamos nos referindo a teatro. Porém, a palavra dramatizar traz em si o radical Drama que na linguagem coloquial relaciona-se a exagero. Assim, além dos sinônimos teatrais, há também, outros sinônimos, como exagerar, tornar melodramático, fingir.
Agora vamos ver do ponto de vista psicodramático. Apesar de Moreno não ter o inglês como língua-mãe, ele conhecia o Inglês. Quando nos seus inícios de teatro terapêutico, em seu livro Teatro da Espontaneidade, ele quer se referir ao que acontece no teatro espontâneo ele cria um neologismo em Inglês. ACTING OUT. Investiguemos um pouco. To Act traduz-se simplesmente por representar, atuar. É o que o ator faz. The actor acts. O ator atua. Moreno queria algo mais. Ele queria uma palavra além da mera atuação, repetição de texto já pronto. Ele queria, por posição, uma palavra que significasse “vivencia expressiva” (palavras de Moreno). “Um agir do interior para o exterior”, um ex-pressar (pressionar para fora) por meio de ação. A ação vista como forma de comunicação. Esse neologismo ganhou, entretanto, conotação pejorativa no jargão psicanalítico como um agir impulsivo, uma passagem ao ato. Isto tem uma profunda diferença na maneira de lidar com o ato espontâneo. Mas Moreno coloca um limitador à possível impulsividade presente no Acting-out. E aí percebemos porque o palco psicodramático é um dos instrumentos capitais do fazer psicodramático. Não o palco necessariamente como um tablado, fisicamente real. Mas, o palco como espaço claramente delimitado de separação entre a realidade e fantasia. Só esta nítida delimitação, até aqui é real, a partir daqui imaginação, pode fazer o Espelho funcionar como recurso. Ao usarmos o Espelho usamos a regra do jogo fantasia/realidade; em pleno momento intenso convidamos o protagonista a sair de cena e se ver em cena. E de onde ele olha? ele olha de fora do palco, do seu real para a sua fantasia. E dentro do palco a ação advém de dentro, espontaneamente, mas não impulsivamente. Porque ela necessita se adequar ao projeto cênico em curso. O nosso ACTING OUT é um atuar de dentro para fora, expressar o interno, o privado, o subjetivo, mas dentro da regra do palco, sujeito à adequação criativa em relação a cena.

Este, com certeza, foi o pulo do gato para Moreno intuir a potência terapêutica da expressão cênica. Por isto, dramatizar, atuar, encenar, soa algo empobrecido comparando com o seu profundo significado psicológico e terapêutico. Talvez, em falta de outra palavra, o melhor seja utilizar psicodramatizar, psicodramatização para acentuar esta profunda diferença.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Iniciando no Psicodrama

O Psicodrama, o método Socionômico, traz conceitos, termos e visões de mundo muitas vezes radicalmente diferentes das outras abordagens. Iniciar-se no Psicodrama pelo aspecto teórico apenas frequentemente redunda em desilusão ou desistência. Na palavra escrita parece ou mágica ou teatrinho ou superficial. Por isto, experienciar diretamente o Psicodrama por meio de vivências grupais prepara o terreno para a apreensão e compreensão da visão teórica trazida por Moreno. As vivências grupais são atos psicodramáticos únicos, não processuais, utilizando a sequência habitual do método, aquecimento, dramatização, compartilhamento/processamento, sendo o processamento a compreensão teórica daquilo que foi vivenciado. Sempre o experimentar do método conduz ao interesse pelo método. Aí sim, o aprofundamento teórico torna-se possível.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Esperando o inesperado

Quando se vivencia pelas primeiras vezes um Teatro Espontâneo ou Psicodrama se é pegado de surpresa. Mas, depois de várias vezes, o inesperado, o surpreendente é aguardado. A espontaneidade é buscada ativamente. Contradição nos próprios termos. E neste momento o que aparece é um fake da espontaneidade: O espontaneísmo, a espontaneidade forçada. Espontaneísmo que não vem da liberdade de tudo poder pensar e agir, mas podendo escolher o mais adequado à situação cênica. Espontaneísmo que é pura impulsividade. Esse espontaneísmo mata a espontaneidade.  É isto que o aquecimento bem conduzido leva a resgatar: o estado de quebra ou ruptura de expectativas, desejos, intenções, receios.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O canastrão e o ator

"Os papéis são a parte tangível do Eu", Moreno escreveu. Tangível é o que toca. Tangente, em Geometria, é a reta que toca a circunferência em um único ponto. E o que Moreno disse? Que os os outros só nos tocam atuando dentro de papéis. Que só podemos conhecer o outro por meio dos papéis que ele exerce. E os papéis têm seu roteiro, fala, guarda-roupa, gestual. Como os papéis teatrais. Mas, Cuidado! No uso habitual representar um papel soa como falsidade, mistificação, falta de autenticidade. NÃO é isto para a Socionomia, Psicodrama, Sociodrama, Teatro Espontâneo.Ao estabelecermos relação com uma outra pessoa ou objeto o fazemos dentro de uma perspectiva, dentro de um papel. Ele assume conteúdos e formas, desse papel. Só que esse papel é, sempre e sempre, criado e atuado junto ao seu papel complementar. Um existe em função do outro. Eles se criam simultaneamente, complementarmente. Um pai surge quando há um filho e vice versa. Professor e aluno. Quando se leva a atuação do papel além da relação complementar, quando ele permanece no palco quando sua atuação já acabou, quando se mantem o desempenho de um papel sem se levar em conta o seu complementar, temos a cristalização do papel. O indivíduo atua o mesmo papel em todas as suas relações. Tal como o canastrão no palco. O bom ator entra e sai dos seus papéis a depender da peça e com quem contracena. O canastrão faz eternamente seu mesmo papel. Comédia ou drama, aventura ou romance, suspense ou fábula, pornô ou místico. O canastrão cristaliza-se em um único desempenho. Assim o indivíduo comum quando petrifica seu desempenho. Um dos objetivos do Psicodrama e do Teatro Espontâneo é ajudar a descristalizar, fluidificar a atuação congelada e pétrea. Permitir que a relação entre papéis complementares esteja assentada  no presente, flexível, fluida, ritmicamente harmônica. 

Postagem em destaque

E assim é.

Experimentar e refletir.  Este blog é um espaço para mostrar ideias sobre o psicodrama, sobre o teatro espontâneo.  Há mais de trinta anos...