domingo, 29 de maio de 2022

Mia Couto

 "E ainda mais se explicou: primeiro, não fomos nós porque éramos filhos. Depois, adiámos o ser porque fomos pais. Agora, querem-nos substituir pelo sermos avós." O fio das missangas, Mia Couto. Esse período de Mia Couto me chega no momento em que sou avô pela terceira e quarta vez. È trecho de um conto curto, denso e doloroso.  Como estou em plena fertilização desse papel, avô, me remeteu ao olhar psicodramático. Toda interação se dá por meio de papéis. Ou seja, o papel é a condensação de fala, conteúdo, afeto, gestual, na interação. Como um papel teatral, os papéis modificam-se à medida que o papel complementar se altera. Com um aluno, sou professor. Com meus filhos, sou pai. Com os amigos sou amigo. Com o chefe, sou subordinado. Com o subordinado, sou chefe. A interação entre papéis é mediada pelo vínculo. Portanto, quanto mais me vincular a múltiplas pessoas e interesses,, mais papéis desenvolverei. A cristalização de um papel, o tornar-se único, faz-nos compreender a escassez, a pobreza vincular, daquele que tenha esses papéis, cristalizados, tornados únicos. Pobreza de papéis = pobreza de vínculos. Naquele conto de Mia Couto, o doloroso é perceber como o personagem resumia sua vida a papéis familiares, em que cada um sucedia ao anterior e o aprisionava até o próximo. Uma sucessão de ilhas afetivo vinculares. Prisão e revolta. A personagem diz "adiámos o ser...". Para a visão socionômica o ser é sempre relacional, ele se constitui com o outro. O ser não é anterior ao outro. Ele nasce deste encontro. Menos encontros, menos vínculos, menos papéis, menos sensação de ser.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Itabira e o sósia

Conversando com um paciente, ele falou de alguém que havia encontrado um seu sósia. De imediato, retruquei: "O sósia se parece mais com você do que vc mesmo!". O paciente olha para mim com cara espantada e pergunta: "Como assim?". Resposta minha: "É que o sósia é cópia da imagem que está na memória de quem o conheceu há muito tempo. O sósia é uma imagem sua que não se alterou pelo tempo nem pela suas vivências pessoais". Quando vemos um sósia o termo de comparação é a nossa imagem mnêmica do passado que não se transformou. A pessoa real, no presente, é aquela imagem mais tudo o que lhe aconteceu. O sósia a imagem conservada na memória. E esse termo, Conserva, é uma palavra que se refere a um conceito Moreniano referindo-se a nossa relação com os fatos culturais. Quanto uma determinada obra de arte se transforma em "A Obra De Arte" ela corre o risco de virar uma conserva cultural, no dicionário psicodramatiquês. Algo estático, icônico. Ícone em grego é imagem, figura. E isso também acontece com a nossa narrativa de vida, nossas perdas, nossos ganhos. Também eles tendem a se cristalizar em conservas. Quando Carlos Drummond de Andrade refere-se a Itabira, sua cidade natal, como "É apenas um retrato na parede. Mas como dói!", ele esta transformando uma conserva cultural numa vivência pesoal.  "Desconservando" o "apenas um retrato na parede" para uma relação íntima com seu passado, suas histórias, seu presente e suas dores. E quem faz esse papel terapeutico é o "Mas" do verso, a abertura de outras formas de vivenciar o já vivido. Isso é psicoterapia. Isso é Psicodrama.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Tentar e experimentar

Ao escutar qualquer paciente dizer:  "Vou tentar fazer", costumo retrucar: "Experimente em vez de tentar!". Em seguida, em geral, digo, "Tentar é álibi para não conseguir". E há, psicodramaticamente, uma profunda diferente. A pessoa, ao usar a expressão "vou tentar", absolutamente, não se põe verdadeiramente, a agir. E está sempre com "um pé atrás", capaz de parar, interromper sua ação a qualquer momento, por qualquer dificuldade ou empecilho. Sua alma não está na ação. Ao experimentar a alma encarna-se na ação. Para evitar ou ajudar a que isso não aconteça, é que no Psicodrama e em todas ações Socionômicas inicia-se pelo aquecimento. No começo para situar a pessoa ou o gupo a se situar no espaço-tempo do palco. Depois, ao aparecer o protagonista do grupo ou iniciar-se a dramatização do protagonista em atendimento Bipessoal, é necessário aquece-lo, ou seja, prepará-lo para a dramatização. No tempo e espaço da ação. Todo esse tempo investido no aquecimento tem seu resgate na dramatização. Aquecido, o protagonista experimenta verdadeiramente, a segunda-vez do fato, vivencia, dentro da realidade suplementar, como real, o dramatizado. Não há tentativas. Há experimentações à vera. 

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E assim é.

Experimentar e refletir.  Este blog é um espaço para mostrar ideias sobre o psicodrama, sobre o teatro espontâneo.  Há mais de trinta anos...