sábado, 13 de agosto de 2022

Psiquiatria e Psicodrama

 Quando uso um adjetivo, sua função é a de delimitar e qualificar um substantivo. Um navio verde não é todos navios, é apenas o navio verde. Quando digo que sou Psiquiatra Psicodramatista, não estou dizendo que sou Psiquiatra E Psicodramatista, dois substantivos separados. Estou dizendo que ao modo de exercer o papel de psiquiatra agrego um modificador, um qualificador: Psicodramatista. Todos os papéis sociais têm um denominador coletivo e um diferenciador subjetivo. Neste caso o diferencial é a atitude, o olhar psicodramático.

A prescrição, a medicação, a possível internação, a vigilância, o diagnóstico, nada disto é diferente do psiquiatra não psicodramista. O que difere é o como. Reconhecer que mesmo investidos de um poder aparente (muitas vezes real) continuamos a ter no paciente psiquiátrico uma outra pessoa, em um papel complementar, com seus quereres e haveres. Ter claro que se trata de um vínculo assimétrico (eu prescrevo, ele ingere) mas que continua sendo um vínculo complementar. Naquele momento, naquele contexto, naqueles papéis, estamos estabelecendo uma relação. O psiquiatra dá o remédio mas é o paciente quem o toma. E que mais é o remédio psiquiátrico que um Ego Auxiliar químico? Por algum tempo, por muito tempo ou por todo o tempo, o remédio irá suprir o paciente com algo que neste instante ele não o tem. Ela, a medicação, nem é Deus nem o Diabo na Terra do Sol.
Antes da prescrição, entretanto, há a consulta. De regra, o paciente psiquiátrico não vem à consulta. Ele é trazido, levado, empurrado, obrigado. Quase nunca desejoso de ali estar. Como, então, estabelecer um vínculo com ele? A minha primeira pergunta, sempre, ao paciente é: “Como você se sente agora neste consultório psiquiátrico?” É a partir daí que pode se estabelecer nossa relação. Neste instante aparecem as dúvidas, os preconceitos, os medos, as imposições e chantagens familiares, as piadas. Posso passar, e às vezes passo, quase toda a consulta discutindo sobre este tema ainda sem perguntar a razão da vinda ou da “trazida”. Quando ultrapassamos este ponto, sempre ou quase sempre, já teremos criado uma relação vincular. “Eu conheço Psiquiatria mas você conhece a sua Vida”. É assim que manifesto a assimetria de nosso vínculo.
Ele sabe mais de si do que eu. Eu sei mais de doenças que ele. O que proponho é que juntemos os nossos conhecimentos e transformemos nosso encontro em alguma coisa útil e prazerosa. Neste encontro uso todos os recursos que o Psicodrama nos dá. Seja pedindo seu solilóquio em um momento de silêncio, seja dando voz a um gesto significativo, seja realizando um duplo em um outro silêncio. Principalmente, é não ficando preso à cadeira de médico. A mobilidade corporal do Diretor Psicodramático incorporada no psiquiatra aparece numa ida à janela com o paciente, em uma caminhada pelo consultório durante a entrevista. Ele sabe mais de si do que eu. Eu é que preciso me esforçar para suprir esta lacuna. E nisto está a questão da confiança. Ela não é dada, é construída. Por que deve um paciente contar a uma outra pessoa que nunca viu e sabe apenas que é médico (quando sabe!), detalhes íntimos, perturbadores, vergonhosos, pessoais? Por que o paciente tem que falar tudo ao médico psiquiatra? “Ele é seu amigo, conte tudo a ele”. Assim falam os acompanhantes. Por isso, nestes momentos da consulta, eu me apresento, digo a ele quem sou, onde e como me formei, quais meus pontos de vistas sobre psiquiatria. No papel social de psiquiatra, abro e exponho ao paciente que psiquiatra sou eu. Tenho uma biblioteca em meu consultório. Frequentemente peço ao paciente para ir lá ver o que tem e trazer algo que lhe interesse. Às vezes um livro, às vezes um objeto de decoração, uma revista. “Veja a minha biblioteca e você vai conhecer um pouco de mim”. Quando voltam, nós temos algo em comum, já podemos falar “nós”.
Sou Psiquiatra psicodramatista para aqueles que me procuram no papel de paciente psiquiátrico. Posso ser, entretanto, Psicodramatista Psiquiatra quando no curso de uma relação psicoterápica configura-se uma síndrome psiquiátrica. Se concluirmos, eu e ele, e entendermos eu e ele, que o remédio será uma utilidade, uma necessidade, haverá a prescrição e o acompanhamento clínico se dará como mais um dos fatos da vida do paciente que trabalharemos no palco psicodramático.
Finalizando e resumindo, o exercício da Psiquiatria Clínica pode ser profundamente enriquecido, sem que se transforme em uma psicoterapia “selvagem”, com a visão Psicodramática do Encontro, do Vínculo, da Complementaridade de Papéis e da Corresponsabilidade.

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