"Gato escaldado tem medo de água fria". Dito de outra maneira: um gato que foi queimado com água fervendo foge da mera visão de qualquer água, antes mesmo de saber se seria água quente ou fria. Se os provérbios refletem um conhecimento acumulado de experiências, esse provérbio é o cerne dos transtornos psíquicos. Do ponto de vista psicológico a água fervendo pode ter sido concretamente H2O a cem graus como pode ter sido uma água imaginada, fantasiada, vista ou ouvida. O resultado é o mesmo; foge-se de qualquer coisa que se assemelhe a água. A vida do nosso gato passa a ser regida pelo medo, pela fuga, pela evitação, pela angústia. O Psicodrama, no dizer de Moreno, insistia que uma verdadeira segunda vez pode libertar a primeira. Uma verdadeira segunda vez acontece no palco psicodramático, é recriado nele, é dramatizado nele. O protagonista psicodramático tem a possibilidade, no palco, na cena psicodramática, de experimentar as temperaturas vivenciais de suas águas existenciais. O método psicodramático por meio de suas técnicas, possibilita essa segunda experiência. E ao nosso gato é possível e provável que redimensione suas relações com sua vida e seus vínculos.
terça-feira, 27 de março de 2018
quinta-feira, 22 de março de 2018
Saúde do Psicoterapeuta
Pesquisando
em dicionários (Houaiss, Aurélio), encontramos para Saúde, além
da definição clássica da OMS, outras acepções: Robustez, vigor,
energia; Estado corporal e psíquico que permite desenvolver as
tarefas diárias; Boa disposição, bem-estar; Capacidade
para suportar, aguentar, ter paciência para.
É a esta última acepção que vamos dedicar a nossa atenção.
Todo
papel, seguindo Moreno, tem uma face convexa, voltada para fora,
objetiva, pública e uma face côncava, voltada para dentro,
subjetiva, privada. Examinemos as duas faces. Na dimensão objetiva,
o papel de terapeuta tem uma expectativa social de que ele seja
“compreensivo”, “aguente tudo”: afinal ele é “terapeuta!”.
Nos outros papéis em que também há grande interação humana,
ainda assim, a expectativa encontra-se voltada para o desempenho de
uma tarefa específica. O médico, a enfermeira, o professor tem
interação humana constante mas medicam, cuidam, ensinam. É isto
que é a sua tarefa e nisto está o olhar expectante. Em nosso caso,
é a própria relação entre nós e o paciente/grupo que é o
objetivo. A relação em si é que é a nossa tarefa e nela está o
olhar expectante. E, na dimensão subjetiva, o que nós aguentamos,
suportamos? Em um dia de trabalho de um psicoterapeuta, todas as suas
horas são preenchidas com algum grau de desarmonia, incômodo ou
sofrimento. O nosso papel complementar, ao nos procurar, chega com
alguma nuance de indiferenciação. Obviamente, esta indiferenciação
vai nos exigir uma diferenciação clara e límpida em nosso próprio
papel. Isto é como passar o tempo com andas (perna de pau). Ou andar
em um piso molhado e escorregadio. Exige atenção continuada,
focalização permanente, cuidado constante. Todo o tempo “ligado”
na relação com o paciente/grupo. Um dia, vários dias, meses, anos.
Porém, o ser/terapeuta desempenha também outros papéis. E, ao
complementar estes outros papéis, por um movimento pendular
existencial, pode indiferenciar-se. Nos seus outros vínculos tenderá
a ser impaciente, chato, possessivo, exigente, incompreensivo ou
qualquer outra coisa. Contanto que esteja de folga do exercício
contínuo e desgastante da diferenciação. Nessas outras relações
poderá lhe faltará disposição ou o bem-estar ou o vigor ou a
capacidade de suportar e de ter paciência. No caso deste ferreiro, o
espeto necessita ser de pau. A emenda, entretanto, tende a ser pior
que o soneto. As relações amorosas podem ser, e são, profundamente
afetadas por este efeito rebote, tornando difícil se estar na outra
ponta do vínculo afetivo com um psicoterapeuta.
Para
complicar um pouco mais, esse bumerangue volta-se também para a
própria relação com o paciente/grupo. É a isto que se denomina de
“burn-out”:
o desgaste físico, psíquico e comportamental do profissional. “Os
sintomas somáticos compreendem: exaustão, fadiga, cefaleias,
distúrbios gastrointestinais, insônia e dispneia. Humor depressivo,
irritabilidade, ansiedade, rigidez, negativismo, ceticismo e
desinteresse são os sintomas psicológicos. A sintomatologia
principal se expressa no comportamento; fazer consultas rápidas,
colocar rótulos depreciativos, evitar os pacientes e o contato
visual, são alguns exemplos ilustrativos. Um profissional que está
“burning-out”, tende a criticar tudo e todos que o cercam, tem
pouca energia para as diferentes solicitações de
seu trabalho, desenvolve frieza e indiferença para com as
necessidades e o sofrimento dos outros, tem sentimentos de decepção
e frustração e comprometimento da auto-estima. O
problema está exposto. Tal qual uma fratura é dita exposta. Mas
será este o Triste Fim de Policarpo Quaresma? Nós não precisamos
encarnar (e acreditar) no papel de quem tudo suporta ou que de tudo
compreendemos. Somos ajudantes (terapeutas) do processo e não o ator
principal. Somos aquilo que, em Teatro e Circo, se chama de “escada”.
Nos Trapalhões, Didi é o principal e Dedé o “escada”.
A ele cabe a tarefa de preparar a cena que terá o seu desfecho nas
mãos do protagonista. Ao “escada”
cabe o ritmo, a atenção para os detalhes e adequação da pergunta
(o “escada” não conclui: ele faz perguntas muitas vezes
óbvias!). Claro que trabalhar todo o tempo com pessoas tendo essa
intensidade, proximidade e relevância, será sempre delicado, mas a
criatividade de ocupar o papel de “escada”, coadjuvante em cena,
evitará a cristalização do personagem Super-Terapeuta: só aparece
a impotência onde antes existia a onipotência.
Falhei em tudo
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá só encontrei ervas e árvores
E quando havia gente era igual à outra.
Tabacaria – Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
segunda-feira, 19 de março de 2018
Eco, Millôr
Novamente lendo Umberto Eco. Em uma de suas crônicas ele se refere ao uso da palavra Reconhecimento. E distingue duas conotações. Uma em que Reconhecimento é o preito de homenagem feito pelas pessoas diante de atos ou atitudes ou obras realizadas por alguém. O que se reconhece é algo de valor. Outra conotação da palavra reconhecimento liga-se ao ato de ser visto. Reconhecer, nesse caso, é saber que já viu aquele rosto em algum lugar. É a nossa sociedade do espetáculo em que tudo é feito pensando nessa segunda conotação do reconhecer. Faz-se algo para ser visto se fazendo algo. E, portanto, ser reconhecido nas ruas e nas mídias. Moreno dizia que todos os papéis tem uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva. A uniformização, a padronização, dos desempenhos dos papéis sociais em sua dimensão objetiva traz consigo o apequenamento, o pouquíssimo aprofundamento da dimensão subjetiva do desempenho desses papéis. E aí lembro-me de um Hai-Kai do Mestre Millôr Fernandes:
"Ah, como são iguais
esses caras diferentes!"
"Ah, como são iguais
esses caras diferentes!"
quarta-feira, 14 de março de 2018
Outra estrela se apaga
"I could be bounded in a nutshell and count myself a king of infinite space, were it not that I have bad dreams", Hamlet, Shakespeare. (eu poderia estar preso numa casca de noz e mesmo assim me considerar rei de espaços infinitos. Se não tivesse sonhos maus). Essa frase hamletiana tornou-se muito conhecida pela citação feita por Stephen Hawking em seu livro Universo numa Casca de Noz. E o Psicodrama com isso, que é que tem? Esse trecho de Shakespeare nos remete ao enorme poder da imaginação em relação às limitações materiais. E também ao poder destrutivo dos sonhos maus. O Psicodrama usa da nossa imaginação para o seu Como Se. Todo o trabalho inicial, mas contínuo, do aquecimento visa manter a imaginação em atividade. O sonho mau, os sonhos maus shakespearianos, acontecem quando o aquecimento decai, a imaginação fraqueja, a dramatização torna-se representação forçada. Aí a casca de noz volta a se fechar sobre o protagonista e o grupo, limitando-os e os prendendo à realidade imediata.
terça-feira, 13 de março de 2018
Teatro Espontâneo e Psicodrama
Com o longo tempo e grande número de atividades públicas de Teatro Espontâneo/Psicodrama/Sociodrama penso algumas coisas sobre fazer essas atividades socionômicas em circunstâncias difíceis. Divido
em expectativas e contexto físico. O contexto grupal terapêutico é
bastante diferente do contexto grupal em uma atividade aberta,
pública. Uma questão importante que o Diretor/Condutor deve atentar
é que no contexto terapêutico os participantes têm um compromisso
tácito de frequência e permanência no grupo. Em uma atividade
pública as pessoas entram e saem na medida de sua conveniência ou
interesse. O único empecilho para a saída antecipada do
participante seria a vergonha de atravessar o espaço físico. Nestas
atividades abertas, públicas mais do que nunca o aquecimento é
vital. Torna-se mandatório perceber a queda de atenção do
participante, estar vigilante para o ritmo da cena, para o interesse
despertado porque nada prende a pessoa como membro do grupo, só este
interesse. Daí porque quem trabalha com TE é tão cuidadoso quanto
ao ritmo da cena e é tão cioso do aquecimento. O julgamento crítico
negativo do grupo é exibido clara e cruamente pela saída
progressiva dos participantes. Temos outra dificuldade que é fruto
até próprio bom desenrolar da atividade de TE. É quando dentro de
uma história criada emerge uma situação pessoal que pela sua
intensidade não pode apenas ser acolhida à parte do desenrolar. É
quando se entra no conflito ético de precisar trabalhar como
Psicodrama Público quando a proposta era de TE. As poucas vezes em
que isto aconteceu a cena original foi congelada e levantada a
questão para a pessoa e para o grupo de como seguiríamos. Alguma
vez houve acordo da pessoa e do grupo para trabalharmos a questão
pessoal. Em uma ocasião, como Diretor/Condutor tomei a iniciativa de
não dar prosseguimento ao trabalho embora aceite pelo grupo e pela
pessoa por considerar que, naquele momento, não havia nem haveria
continência para um trabalho de cunho terapêutico stricto sensu.
Mas, enfim, este é um risco inerente a todo trabalho grupal e, ainda
que devamos nos prevenir, às vezes não há como evitar lidar com
este dilema. A decisão será sempre levando em conta o grupo, a
pessoa e a sensibilidade télica do Diretor/Condutor.
A
outra parte de dificuldade refere-se ao contexto físico, ao espaço
destinado ao trabalho. O espaço há que ser proporcional ao tamanho
do grupo. Grupo grande em espaço pequeno é tão problemático
quanto grupo pequeno em espaço muito grande. O primeiro é
complicado pela limitação de movimento e o segundo complica pela
sensação grupal de pequenez, como se reduzisse a importância do
grupo, acentuando seu pequeno tamanho. A compatibilização é muito
importante para o aquecimento e desdobramento do trabalho. A presença
de cadeiras fixas torna-se um empecilho considerável. Neste caso
pode-se pensar nos corredores, na parte da frente das cadeiras. Tudo
na dependência do tamanho do grupo. Em último caso, há a
possibilidade de fazer-se o aquecimento nos próprios lugares, usando
mais a palavra. Cantos, jogos verbais, desafios entre partes do
auditório podem ser usados deixando os poucos espaços livres para a
cena em si. Não nos esqueçamos nunca que a palavra também pode ser
uma forma de ação. Locais sem cadeiras, espaços abertos, podem não
ser muito bons para pessoas com limitações físicas ou com idade
avançada. Isto favoreceria a saída precoce destas pessoas, não por
desinteresse, mas por desconforto. Então, é necessário perceber os
sinais de desconforto físico, minimizá-los se possível, ou
trabalhar a saída delas de maneira que não seja desaquecimento para
o grupo e que elas, ao sair, não se sintam inteiramente frustradas
ou discriminadas.
Estes
são alguns exemplos de dificuldades no exercício do ato socionomico
em espaço público ou aberto. Entretanto, lembremos alguns pontos:
não esperemos a situação ideal; o método psicodramático
pressupõe que tomemos a realidade tal como ela se apresenta; o
Diretor/Condutor não carrega o grupo, não é o responsável
solitário pelas decisões e escolhas; cabe ao Diretor/Condutor,
seguindo o método socionômico, ter sempre em mente que ele é
membro do grupo, em papel diferenciado; trazer para o grupo os
problemas e dificuldades porque ao grupo cabe encontrar a forma
melhor e adequada de lidar com estes percalços.
Enfim,
o método socionômico é a nossa ferramenta para lidar com as
dificuldades operacionais.
Há que se viver o método, tornando-o
parte inerente do exercício de todos, todos mesmos, instantes da
atividade grupal. Ou seja, dificuldades e problemas podem ser
aquecimento.
sexta-feira, 9 de março de 2018
TE e PD
O Teatro Espontâneo (TE) é um instrumento analógico e
estético de impulsionar mudanças tendo aplicações desde a lúdica à
terapêutica. Para psicodramistas que não trabalham ou
não desejam trabalhar especificamente com TE, posso perguntar. O que interessa a um diretor de Psicodrama (PD) ou Sociodrama (SD) fazer TE? O Diretor em Sociatria (é como Moreno denomina os instrumentos de intervenção Socionômicos) é essencialmente o primeiro
protagonista. É ele quem primeiro entra em luta (agon), é ele quem
primeiro pisa em um vazio, é ele quem confia na incerteza. A
Espontaneidade, real e vivenciada, do Diretor é a chave e o
metrônomo do desenvolvimento do grupo. O TE privilegia a estética da cena, o ritmo, o aquecimento grupal. Com isso, participar ou fazer TE dá ao diretor de PD ou SD possibilidades de introduzir noções de
ritmo e estética permitindo que o papel de Diretor seja enriquecido
e ampliado.
segunda-feira, 5 de março de 2018
destino e escolha
Escutando ontem uma antiga música de Raul Seixas, Messias Indeciso. em meio à letra há esses versos: "O destino é a gente que faz na mente de quem for capaz". E pensei sobre. Pensei que o que chamamos de destino é a inexorabilidade de um projeto de vida, sua imutabilidade. É algo como aquela piada antiga de alguém caminhando em uma rua e vê uma casca de banana e diz: ai, jesus, lá vou eu cair outra vez! (enquanto continua caminhando em direção à casca de banana). Moreno disse certa vez que a verdadeira segunda vez liberta a primeira. E o que seria uma verdadeira segunda vez? Seria a dramatização com espontaneidade plena de um plano de vida congelado, de um projeto de vida inexorável, de uma conserva qualquer chamada de destino, sina, sou assim mesmo, minha vida é assim. A possibilidade de que uma dramatização em plena Espontaneidade permita, possibilite, abra a chance de abrir a conservada hipótese de destino para um novo olhar, um novo pensar. Sair do destino e caminhar para a escolha. E não para a contínua casca de banana.
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