quinta-feira, 22 de março de 2018

Saúde do Psicoterapeuta

Pesquisando em dicionários (Houaiss, Aurélio), encontramos para Saúde, além da definição clássica da OMS, outras acepções: Robustez, vigor, energia; Estado corporal e psíquico que permite desenvolver as tarefas diárias; Boa disposição, bem-estar; Capacidade para suportar, aguentar, ter paciência para. É a esta última acepção que vamos dedicar a nossa atenção.
Todo papel, seguindo Moreno, tem uma face convexa, voltada para fora, objetiva, pública e uma face côncava, voltada para dentro, subjetiva, privada. Examinemos as duas faces. Na dimensão objetiva, o papel de terapeuta tem uma expectativa social de que ele seja “compreensivo”, “aguente tudo”: afinal ele é “terapeuta!”. Nos outros papéis em que também há grande interação humana, ainda assim, a expectativa encontra-se voltada para o desempenho de uma tarefa específica. O médico, a enfermeira, o professor tem interação humana constante mas medicam, cuidam, ensinam. É isto que é a sua tarefa e nisto está o olhar expectante. Em nosso caso, é a própria relação entre nós e o paciente/grupo que é o objetivo. A relação em si é que é a nossa tarefa e nela está o olhar expectante. E, na dimensão subjetiva, o que nós aguentamos, suportamos? Em um dia de trabalho de um psicoterapeuta, todas as suas horas são preenchidas com algum grau de desarmonia, incômodo ou sofrimento. O nosso papel complementar, ao nos procurar, chega com alguma nuance de indiferenciação. Obviamente, esta indiferenciação vai nos exigir uma diferenciação clara e límpida em nosso próprio papel. Isto é como passar o tempo com andas (perna de pau). Ou andar em um piso molhado e escorregadio. Exige atenção continuada, focalização permanente, cuidado constante. Todo o tempo “ligado” na relação com o paciente/grupo. Um dia, vários dias, meses, anos. Porém, o ser/terapeuta desempenha também outros papéis. E, ao complementar estes outros papéis, por um movimento pendular existencial, pode indiferenciar-se. Nos seus outros vínculos tenderá a ser impaciente, chato, possessivo, exigente, incompreensivo ou qualquer outra coisa. Contanto que esteja de folga do exercício contínuo e desgastante da diferenciação. Nessas outras relações poderá lhe faltará disposição ou o bem-estar ou o vigor ou a capacidade de suportar e de ter paciência. No caso deste ferreiro, o espeto necessita ser de pau. A emenda, entretanto, tende a ser pior que o soneto. As relações amorosas podem ser, e são, profundamente afetadas por este efeito rebote, tornando difícil se estar na outra ponta do vínculo afetivo com um psicoterapeuta.
Para complicar um pouco mais, esse bumerangue volta-se também para a própria relação com o paciente/grupo. É a isto que se denomina de “burn-out”: o desgaste físico, psíquico e comportamental do profissional. “Os sintomas somáticos compreendem: exaustão, fadiga, cefaleias, distúrbios gastrointestinais, insônia e dispneia. Humor depressivo, irritabilidade, ansiedade, rigidez, negativismo, ceticismo e desinteresse são os sintomas psicológicos. A sintomatologia principal se expressa no comportamento; fazer consultas rápidas, colocar rótulos depreciativos, evitar os pacientes e o contato visual, são alguns exemplos ilustrativos. Um profissional que está “burning-out”, tende a criticar tudo e todos que o cercam, tem pouca energia para as diferentes solicitações de seu trabalho, desenvolve frieza e indiferença para com as necessidades e o sofrimento dos outros, tem sentimentos de decepção e frustração e comprometimento da auto-estima. O problema está exposto. Tal qual uma fratura é dita exposta. Mas será este o Triste Fim de Policarpo Quaresma? Nós não precisamos encarnar (e acreditar) no papel de quem tudo suporta ou que de tudo compreendemos. Somos ajudantes (terapeutas) do processo e não o ator principal. Somos aquilo que, em Teatro e Circo, se chama de “escada”. Nos Trapalhões, Didi é o principal e Dedé o “escada”. A ele cabe a tarefa de preparar a cena que terá o seu desfecho nas mãos do protagonista. Ao “escada” cabe o ritmo, a atenção para os detalhes e adequação da pergunta (o “escada” não conclui: ele faz perguntas muitas vezes óbvias!). Claro que trabalhar todo o tempo com pessoas tendo essa intensidade, proximidade e relevância, será sempre delicado, mas a criatividade de ocupar o papel de “escada”, coadjuvante em cena, evitará a cristalização do personagem Super-Terapeuta: só aparece a impotência onde antes existia a onipotência.

Falhei em tudo

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá só encontrei ervas e árvores

E quando havia gente era igual à outra.

Tabacaria – Álvaro de Campos/Fernando Pessoa



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