quarta-feira, 22 de abril de 2020

Marinheiros e tempestade

De todos os atributos humanos, talvez, o mais útil para sua sobrevivência haja sido a antecipação do futuro. Essa possibilidade de antever as consequências e desdobramentos de sua ação, deve ter sido fundamental para lidar com um ambiente em que sua características eram desfavoráveis comparada às de outros animais. Mas, tudo tem seu preço. E o preço é a ansiedade, o temor do futuro, o sentir-se menor de que seus medos. Há um verso de Rainier Maria Rilke, em Elegias de Duino, que diz assim: "Vagueiam leões, ainda, alheios ao desamparo enquanto vivem seu esplendor". Antecipar o futuro nos tirou do viver nosso esplendor e ampliou o nosso desamparo. Então, o ser humano está sempre diante da interrogação do futuro. Com a consequente apreensão, com o aperto no coração. A isso chamamos de ansiedade, angústia (aliás, essas duas palavras vêm do radical latino anx significando aperto). E o nosso truque existencial para lidar com isso sempre foi o controle, o tentar controlar o futuro, tentar nos convencermos que realmente dirigimos nosso destino. A maioria das pessoas vive suas vidas com esses truques e sobrevivem. Muitas, entretanto, não conseguem usar esses truques ou realmente acreditar que eles funcionem. A esses chamávamos de ansiosos. Para essas pessoas existia a psicoterapia, a psiquiatria, a medicação. E hoje, em tempos de Covid-19? A ameaça é geral, generalizada, invisível, incontrolável individualmente, sem certeza nenhuma de futuro. Hoje, todos estão como muitos ficavam antes. Temerosos, impotentes, recorrendo a qualquer sugestão que lhes dê alguma sensação de domínio sobre seu presente e seu futuro. Sensação, não certeza. O que dá a certeza hoje é só o fanatismo de qualquer ordem. O que a razão, o raciocínio, o pensar nos dá é angústia. Fernando Pessoa diz: "Quem tem alma não tem calma". O pensamento fanático de qualquer tipo desumaniza o ser humano ao congelar seu pensamento e raciocínio.  Hoje meu trabalho, enquanto profissional da área Psi, é, primeiro situar a pessoa nesse contexto, lembrando que em tempos anormais o normal, o comum, é sentir-se anormal, diferente de seu habitual. Nós, os profissionais também somos presa desses mesmos sentimentos e emoções que os que nos procuram trazem. Então, é segurar a onda. Como marinheiro em tempestade. leva o barco devagar, sem movimentos bruscos, evitando que o barco vire e afunde. Mas a tempestade está em volta. Existe a convicção no marinheiro que só lhe cabe esperar e evitar piorar o que já está ruim. O palco psicodramático, a cena psicodramática, permite, possibilita que o protagonista possa experimentar dentro da cena dramatizada seus temores de futuro. Para sair da imobilidade impotente e angustiante. Para fugir do congelamento de sua humanidade pelo fanatismo. Para testar possibilidades. Boas e ruins. Ao nosso Psicodrama cabe o recurso de usar esse palco, a cena para concretizar os temores e levar cada um a experimentar possíveis jeitos de lidar com a tempestade.
"Faça como o velho marinheiro
que durante o nevoeiro
leva o barco devagar".
Argumento, Paulinho da Viola


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