“A agulha do Real nas mãos da fantasia”
A linha e o linho, Gilberto Gil
Como já foi dito, o Psicodrama que fazemos hoje não é o Psicodrama que Moreno fazia. Assim também podemos falar do que convencionamos chamar Teatro Espontâneo. Moreno denominava, e assim intitulou seu livro, Teatro da Espontaneidade. Nós usamos a expressão Teatro Espontâneo. Trata-se da mesma coisa? Estamos falando de mera troca de uma locução adjetiva, da espontaneidade, pelo adjetivo correspondente, espontâneo? Não, penso que não. E é disto que tratarei a seguir. Lendo o livro de Moreno, percebemos que sua intenção primeira era de valorizar e sedimentar o conceito de Espontaneidade. Era o centro de sua atenção, de seu universo particular. Era a sua ferramenta para se contrapor ao conservado, petrificado, tradicional. Ao teatro morto e congelado se contrapunha a experiência espontânea. Era a sua lança diante do moinho de vento do teatro tradicional. Assim DA ESPONTANEIDADE refere-se a um substantivo, a um algo que precisa ser exibido, desenvolvido, cultivado. Todo o esforço da trupe e de Moreno era exibir diante de uma plateia descrente e atônita, um algo novo, revolucionário: a Espontaneidade. Fazendo uma dublagem (duplo) de um possível frequentador, digo: ”Puxa, não é que existe mesmo esta Espontaneidade que Moreno fala? Eu a vi no palco”. Também posso fazer outra dublagem (duplo): “por mais que eles se esforçassem não vi a Espontaneidade apregoada, vi uma bagunça completa". Como poderia ser a dublagem de um ator qualquer da trupe: “Hoje a Espontaneidade estava no palco, vi no rosto das pessoas sua surpresa". Ou então: “Tentamos de tudo, mas não deu". E Moreno, qual seria seu duplo? “Eu sabia que era possível mostrar do que a Espontaneidade é capaz!”
Ou: “Vou ter que inventar mais um jeito para esfregar na cara das pessoas que isto existe!”. Como toda dublagem, ela poderia ou não ser validada pelas pessoas, mas, para efeito de discussão consideremos que houve esta validação. A Espontaneidade era a atriz principal de seu Teatro. Todos os olhos voltados, benévola ou malevolamente, para ela. O Teatro da Espontaneidade existia e existiu, para justificar uma ideia de Moreno. Foi necessário, foi imprescindível. No contexto da época, estimular a existência da Espontaneidade era navegar contra uma corrente que via a liberdade e espontaneidade como geradoras de caos, de caos destrutivo. A década de 20 do século XX ainda era século XIX: sua estética, sua ética, sua moral era de um século XIX estendido. Moreno e Freud, trouxeram, a seu tempo, dois demônios a serem exorcizados, o sexo e a espontaneidade.
Mas, tempos fugit. O tempo passa. Ao longo do tempo, o substantivo Espontaneidade foi sendo substituída por um adjetivo, uma qualificação. Gradualmente, já não se perseguia a espontaneidade como um fim e sim um agir espontâneo, um criar espontâneo, um viver espontâneo. Uma CREAÇÃO. Em que o objetivo está no processo, no status nascendi.
O Teatro Espontâneo é a criação em status nascendi. Seu objetivo, sua meta, sua realização é o próprio fazer, o construir. “mais importante do que a evolução da criação é a evolução do criador”. O ritmo, a estética são balizadores do fazer harmônico daquele grupo. No Teatro Espontâneo matricial, em que do próprio grupo emergem as histórias, o protagonista, os egos auxiliares, cada grupo ou cada agrupamento tornado grupo pelo aquecimento, tem caminhos diferentes, constrói-se diferente e tem o seu fim possível. Cada grupo obtém o que ele pode obter daquele e naquele MOMENTO (Kairós). A dublagem (duplo) possível de um membro do grupo: “Gostei de sentir que podemos fazer coisas juntos, a partir do nada”. Ou então: “Achei uma história boba, parecendo grupo amador”. O condutor do grupo: “Tinha instantes que não sabia o que fazer ou por onde ir, mas sempre confio no grupo e aonde ele me leva”. Embora trabalhoso, arriscado, demandando uma direção cuidadosa, o TE no formato matricial, sem trupe específica, possibilita ao grupo não só contar e ouvir histórias, mas, e principalmente, fazendo-se de ator e dramaturgo, construir um algo evanescente, produção possível do grupo, fotografia daquele instante vivencial, atravessado pelo social e pelo histórico, que dura o que o grupo durar, mas permanece como experiência indelével. A meta é o caminho.
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