segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Ensinar Psicodrama?

A maior vantagem do Psicodrama e das Artes Psicodramáticas (dança, música e pintura espontâneas) é ascensão da forma e beleza das cinzas da produção espontânea”.
Moreno in Quem sobreviverá?
Minha filosofia tem sido mal entendida e desconsiderada em muitos círculos científicos e religiosos. Isto não me impediu de continuar a desenvolver técnicas provenientes da minha visão de como o mundo deveria ser estabelecido. É curioso o fato de que esses métodos – sociometria, psicodrama, terapia de grupo – criados para implementar uma filosofia fundamenta de vida subjacente, têm sido universalmente aceitos, enquanto a Filosofia é relegada aos cantos escuros das estantes das bibliotecas ou de todo esquecidas”.
Moreno in Autobiografia

Axioma: O Psicodrama é mais do que uma técnica de fazer. É um método de olhar e vivenciar a relação com o grupo/cliente/mundo.

Corolário 1: Ensinar técnicas não faz um psicodramista.
Corolário 2: O uso das técnicas psicodramáticas não faz de alguém psicodramista.

Na maioria dos métodos psicoterápicos a formação de novos profissionais raramente se inicia com a biografia do mentor. Provavelmente,a vida particular, histórias pessoais, acidentes, vaticínios, não são considerados no processo formativo. É possível  que que seus seguidores pouco conheçam da vida íntima dos seus mentores. Talvez mais adiante, por interesse pessoal, alguém mergulhe mais a fundo. Mas, como parte da formação, como elemento essencial de um curso formal, provavelmente não. O que importa são apenas as ideias, as obras. Com os Psicodramistas acontece o contrário. Em, todas as escolas formadoras a biografia de Moreno é parte essencial da aproximação do estudante com a Socionomia. Será que isto se tornou apenas uma conserva didática? Por que a vida pessoal de Moreno é imprescindível (ou deveria ser) para a formação do Socionomista?
A nossa colega e amiga Valéria Brito escreveu certo dia, de forma lapidar: “Ao contrário do que habitualmente se supõe, a especificidade do Psicodrama reside mais em seus pressupostos do que em sua técnica.” E que pressupostos são estes? A Socionomia lastreia-se no pressuposto de que o ser humano é relacional. A Socionomia, mais do que a técnica, são estas suas pressuposições, axiomas, posturas filosóficas que a definem. Quando estudamos Moreno em sua infância, brincadeiras megalomaníacas, vivências místicas, experiências sociais, estamos fazendo nosso Caminho de Santiago. É uma iniciação não à sua técnica, mas à sua atitude filosófica existencial. Isto não deveria ser apenas matéria de erudição. Deveria ser vivencial. Ensinar técnicas psicodramáticas não produz psicodramistas, produz técnicos em Psicodrama.
Aconteceu com o ensino das escolas o que aconteceu com o próprio Moreno ao sair da Europa para os EUA. O início de Moreno, intuitivo e impulsivo, artístico e crítico, definidor do olhar psicodramático, foi gradualmente cedendo o passo, no afã de ser aceito por uma cultura obsessiva como a americana. Ele deixa aquele início e afirma o lado matemático, o pesar, medir, contar, a pretensa seriedade científica substituindo o olhar artístico com embasamento filosófico. Ele forçou-se a pensar como americano, a fazer como americano. Aí ocorre esta dicotomia: arte europeia, ciência americana. As fórmulas e equações sociométricas são bem diferentes do Komoedien Haus. Com as escolas o mesmo. O formal, o obsessivo, supera o artístico, histérico. Enfim, Psicodrama é sério, terapêutico, científico. O TE é lúdico, espontâneo, divertido. E só. Mas, onde fica o olhar fenomenológico existencial? Onde fica o real vivenciar do diretor ser um membro do grupo (em papel diferenciado)? Onde o real sentido de confiar em que o grupo encontra as suas respostas? Onde a experiência vivencial de que o ser humano se constitui em grupo, que é um ser em relação? Isto não é só técnica. É a encarnação de um jeito de olhar e pensar o grupo. Mas, se admitirmos que está acontecendo e aconteceu às escolas de Psicodrama o mesmo que aconteceu ao seu criador, então temos que enfrentar o mesmo desafio. Também para sermos aceitos na comunidade acadêmica precisamos de usar a linguagem acadêmica, a formatação acadêmica. Para termos alunos precisamos de que esses alunos recebam o que buscam, um diploma com reconhecimento do Ministério de Educação, validado para o mercado de trabalho. Essa é a nossa realidade imediata. E como seria a nossa realidade suplementar?

Há um ditado Zen budista que diz: ao se apontar o dedo para a Lua deve-se ter cuidado de não confundir o dedo com a Lua. O formal, a monografia, a ABNT, são dedos apontando para a Lua. E que Lua é esta? Há uma frase de Moreno, sobre as diferenças entre ele e Freud, dizendo que Freud morreria de prisão de ventre e ele de diarreia. Todos estamos padecendo desta obstipação criativa. O nosso ventre espontâneo está preso. Saídas? Vejo caminhos no recuperar o aprofundamento filosófico, nos pressupostos existenciais e humanistas, em fazê-lo não de forma erudita, como textos lidos, mas sim vivenciado, encarnado, descobrindo e afirmando em cada um sua visão de mundo. Vejo caminhos no recuperar a arte europeia, no exercício do Teatro Espontâneo como método didático. Afinal, o nosso Diretor/Condutor é verdadeiramente o primeiro a agonizar no espaço cênico, é a primeira personagem que aparece. E ele encarna o metrônomo do grupo. Sua espontaneidade e criatividade determinam o fluxo de energia criativa inicial. O aquecimento depende dele. E do aquecimento tudo depende. Para saber enxergar e ouvir o grupo o Diretor precisa estar aberto, disponível, sem armaduras ou defesas prévias. E isto é exatamente o que o trabalho com o TE ajuda a desenvolver. O foco estético no TE é o eixo onde gira a Direção. Por isto, o cuidado com o ritmo, a fluidez, a ressonância junto ao grupo, a atenção particularmente quanto à manutenção do aquecimento grupal. Isto é vital. Porque se corre o risco, ao não se atentar para o aquecimento, que a plateia se esvazie. Como não há compromisso terapêutico, a plateia permanece enquanto se encontra motivada, interessada. Outro aspecto importante e curioso é que o público se apropria de partes ou trechos do acontecido. No compartilhamento é que se percebe que, da obra realizada, cada pessoa, cada parte da plateia, pinçou, apropriou-se de algo diferente. Para o Diretor é necessário não ter uma postura autoral, quem dá (ou não dá) sentido ao acontecido é o público. Como o Diretor de TE trabalha fora da psiquiatria/psicologia, apresentando-se sem este aval, fica totalmente entregue ao que ele consegue construir junto com o grupo. Daí porque para se fazer TE está implícito que o grupo é construtor e senhor do seu caminho. Cabe ao Diretor dar forma esteticamente resolvida a este caminho.
Neste ponto, não bastam as técnicas. Há o verdadeiro vivenciar de todos os pressupostos Morenianos: ser humano como ser relacional; Diretor/Condutor como parte do grupo em papel diferenciado; postura fenomenológica, não interpretativa, que toma o que está posto; do Psicodrama ser uma construção coletiva e uma contínua objetivação do subjetivo com a subjetivação do objetivo. Mas TE é lúdico, não é sério.
Retornando, e finalizando, aos pressupostos Morenianos, a reflexão é sobre o que foi perdido ao se ganhar o que foi ganho. Apenas as técnicas ou o uso delas não nos diferencia, a potência do Psicodrama não está nas técnicas, mas no como e para que são usadas.


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