Moreno in Quem sobreviverá?
“Minha
filosofia tem sido mal entendida e desconsiderada em muitos círculos
científicos e religiosos. Isto não me impediu de continuar a
desenvolver técnicas provenientes da minha visão de como o mundo
deveria ser estabelecido. É curioso o fato de que esses métodos –
sociometria, psicodrama, terapia de grupo – criados para
implementar uma filosofia fundamenta de vida subjacente, têm sido
universalmente aceitos, enquanto a Filosofia é relegada aos cantos
escuros das estantes das bibliotecas ou de todo esquecidas”.
Moreno in Autobiografia
Axioma:
O Psicodrama é mais do que uma técnica de fazer. É um método de
olhar e vivenciar a relação com o grupo/cliente/mundo.
Corolário
1: Ensinar técnicas não faz um psicodramista.
Corolário
2: O uso das técnicas psicodramáticas não faz de alguém
psicodramista.
Na maioria dos métodos psicoterápicos a formação de novos profissionais raramente se
inicia com a biografia do mentor. Provavelmente,a vida particular,
histórias pessoais, acidentes, vaticínios, não são considerados
no processo formativo. É possível que que seus seguidores pouco conheçam da vida íntima
dos seus mentores. Talvez mais adiante, por interesse pessoal, alguém
mergulhe mais a fundo. Mas, como parte da formação, como elemento
essencial de um curso formal, provavelmente não. O que importa são apenas as
ideias, as obras. Com os Psicodramistas acontece o contrário. Em,
todas as escolas formadoras a biografia de Moreno é parte essencial
da aproximação do estudante com a Socionomia. Será que isto se
tornou apenas uma conserva didática? Por que a vida pessoal de
Moreno é imprescindível (ou deveria ser) para a formação do
Socionomista?
A
nossa colega e amiga Valéria Brito escreveu certo dia, de forma
lapidar: “Ao
contrário do que habitualmente se supõe, a especificidade do
Psicodrama reside mais em seus pressupostos do que em sua técnica.”
E que pressupostos são estes? A Socionomia lastreia-se no
pressuposto de que o ser humano é relacional. A Socionomia, mais do
que a técnica, são estas suas pressuposições, axiomas, posturas
filosóficas que a definem. Quando estudamos Moreno em sua infância,
brincadeiras megalomaníacas, vivências místicas, experiências
sociais, estamos fazendo nosso Caminho de Santiago. É uma iniciação
não à sua técnica, mas à sua atitude filosófica existencial.
Isto não deveria ser apenas matéria de erudição. Deveria ser
vivencial. Ensinar técnicas psicodramáticas não produz
psicodramistas, produz técnicos em Psicodrama.
Aconteceu
com o ensino das escolas o que aconteceu com o próprio Moreno ao
sair da Europa para os EUA. O início de Moreno, intuitivo e
impulsivo, artístico e crítico, definidor do olhar psicodramático,
foi gradualmente cedendo o passo, no afã de ser aceito por uma
cultura obsessiva como a americana. Ele deixa aquele início e afirma
o lado matemático, o pesar, medir, contar, a pretensa seriedade
científica substituindo o olhar artístico com embasamento
filosófico. Ele forçou-se a pensar como americano, a fazer como
americano. Aí ocorre esta dicotomia: arte europeia, ciência
americana. As fórmulas e equações sociométricas são bem
diferentes do Komoedien Haus. Com as escolas o mesmo. O formal, o
obsessivo, supera o artístico, histérico. Enfim, Psicodrama é
sério, terapêutico, científico. O TE é lúdico, espontâneo,
divertido. E só. Mas, onde fica o olhar fenomenológico existencial?
Onde fica o real vivenciar do diretor ser um membro do grupo (em
papel diferenciado)? Onde o real sentido de confiar em que o grupo
encontra as suas respostas? Onde a experiência vivencial de que o
ser humano se constitui em grupo, que é um ser em relação? Isto
não é só técnica. É a encarnação de um jeito de olhar e pensar
o grupo. Mas, se admitirmos que está acontecendo e aconteceu às
escolas de Psicodrama o mesmo que aconteceu ao seu criador, então
temos que enfrentar o mesmo desafio. Também para sermos aceitos na
comunidade acadêmica precisamos de usar a linguagem acadêmica, a
formatação acadêmica. Para termos alunos precisamos de que esses
alunos recebam o que buscam, um diploma com reconhecimento do
Ministério de Educação, validado para o mercado de trabalho. Essa
é a nossa realidade imediata. E como seria a nossa realidade
suplementar?
Há
um ditado Zen budista que diz: ao se apontar o dedo para a Lua
deve-se ter cuidado de não confundir o dedo com a Lua. O formal, a
monografia, a ABNT, são dedos apontando para a Lua. E que Lua é
esta? Há uma frase de Moreno, sobre as diferenças entre ele e
Freud, dizendo que Freud morreria de prisão de ventre e ele de
diarreia. Todos estamos padecendo desta obstipação criativa. O
nosso ventre espontâneo está preso. Saídas? Vejo caminhos no
recuperar o aprofundamento filosófico, nos pressupostos existenciais
e humanistas, em fazê-lo não de forma erudita, como textos lidos,
mas sim vivenciado, encarnado, descobrindo e afirmando em cada um sua
visão de mundo. Vejo caminhos no recuperar a arte europeia, no
exercício do Teatro Espontâneo como método didático. Afinal, o
nosso Diretor/Condutor é verdadeiramente o primeiro a agonizar no
espaço cênico, é a primeira personagem que aparece. E ele encarna
o metrônomo do grupo. Sua espontaneidade e criatividade determinam o
fluxo de energia criativa inicial. O aquecimento depende dele. E do
aquecimento tudo depende. Para saber enxergar e ouvir o grupo o
Diretor precisa estar aberto, disponível, sem armaduras ou defesas
prévias. E isto é exatamente o que o trabalho com o TE ajuda a
desenvolver. O foco estético no TE é o eixo onde gira a Direção.
Por isto, o cuidado com o ritmo, a fluidez, a ressonância junto ao
grupo, a atenção particularmente quanto à manutenção do
aquecimento grupal. Isto é vital. Porque se corre o risco, ao não
se atentar para o aquecimento, que a plateia se esvazie. Como não há
compromisso terapêutico, a plateia permanece enquanto se encontra
motivada, interessada. Outro aspecto importante e curioso é que o
público se apropria de partes ou trechos do acontecido. No
compartilhamento é que se percebe que, da obra realizada, cada
pessoa, cada parte da plateia, pinçou, apropriou-se de algo
diferente. Para o Diretor é necessário não ter uma postura
autoral, quem dá (ou não dá) sentido ao acontecido é o público.
Como o Diretor de TE trabalha fora da psiquiatria/psicologia,
apresentando-se sem este aval, fica totalmente entregue ao que ele
consegue construir junto com o grupo. Daí porque para se fazer TE
está implícito que o grupo é construtor e senhor do seu caminho.
Cabe ao Diretor dar forma esteticamente resolvida a este caminho.
Neste
ponto, não bastam as técnicas. Há o verdadeiro vivenciar de todos
os pressupostos Morenianos: ser humano como ser relacional;
Diretor/Condutor como parte do grupo em papel diferenciado; postura
fenomenológica, não interpretativa, que toma o que está posto; do
Psicodrama ser uma construção coletiva e uma contínua objetivação
do subjetivo com a subjetivação do objetivo. Mas TE é lúdico, não
é sério.
Retornando,
e finalizando, aos pressupostos Morenianos, a reflexão é sobre o
que foi perdido ao se ganhar o que foi ganho. Apenas as técnicas ou
o uso delas não nos diferencia, a potência do Psicodrama não está
nas técnicas, mas no como e para que são usadas.
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