sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Inícios e fins

  O ano do calendário está se encerrando. Chegará, enfim, amanhã, o dia número 365. E depois o Dia 1 estará aí. O calendário diz que as coisas terminam e recomeçam. Todo ano há um fim de ano  e há um primeiro dia do novo ano. Mas, em nós, parece que vivemos como se a estrada da vida fosse uma linha reta de mão única. Parece-nos que os começos são novidades e os fins são definitivos. Talvez por isso a culpa esteja presente sempre em nós, como se o passado fosse sempre passado, irremediavelmente passado. E o futuro nos chega como sempre oportunidades únicas, irrepetíveis, o tal do cavalo selado que só passa uma vez. "Perdeu, playboy!". E se, realmente, olharmos para as coisas como se houvesse, sempre, a possibilidade, de fazer de forma diferente aquilo que se fez e não deu certo? E se pudéssemos experimentar novos erros, em lugar de imobilizarmo-nos na culpa penitencial? Na filosofia Moreniana que embasa o Psicodrama está sempre o presente, palco do passado e da expectativa do futuro. Mas sempre o presente. Onde, ajudados pela louca da casa, a imaginação, podemos experimentar a re-visão do passado e viver o futuro. E, por fim, sair da imobilidade da culpa e da dor (do passado) e da imobilidade do temor (do futuro). Psicodrama é mais do que exercício de técnicas psicodramáticas. Psicodrama é o exercício contínuo da flexibilidade como instrumento do viver. Que possamos cometer erros novos. Porque repeti-los não é inteligente, e não tê-los é estarmos imóveis e imobilizados na vida.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Poetas

 Há uma grande música de Monarco e Ratinho, portelenses de raiz, chamada Coração em Desalinho: "Numa estrada dessa vida te encontrei". Há outra, de Renato Teixeira, gravada por Xangai, chamada "Pequenina": "São tão claros os presságios e os encontros dessa vida quando as partes combinadas surgem numa mesma estrada". O poeta florentino, Dante, inicia o Inferno, em sua Divina Comédia, dizendo: "Em meio da estrada dessa vida". Três poetas, mesma metáfora. A vida como estrada que tem início e tem fim. Dante chama a atenção do meio da estrada, do processo de amadurecimento, que não é no início nem no fim. Em meio à vida. Monarco e Ratinho dizem que a estrada-vida é o local de encontros. Renato Teixeira, enfim, diz "quando as partes combinadas surgem numa mesma estrada", quando pessoas por combinação, por acordo, aparecem, surgem, encontram-se na vida-estrada. Esses poetas psicodramáticos (ou o Psicodrama será a visão poética aplicada à saúde relacional?) definem o nosso Encontro Moreniano; Acontece no processo da vida, quando as partes da relação combinam, acordam em estar numa mesma estrada. E aí, prosseguindo a visão poético-psicodramática, acrescentamos um outro conceito, muitas e muitas vezes de difícil compreensão. Tele. Tele é quando as partes combinam, seja em seguir juntos numa mesma estrada, ou seguirem separados, em sentidos opostos, mas na mesma estrada. Ou há relação télica quando as partes estão combinadas, em estarem juntas ou estarem separadas. A mesma estrada é a estrada da com-preensão. Ambos com-preendem e con-cordam. A relação é não-tèlica quando "as partes" não estão combinadas, quando nem estão na mesma estrada. Estrada, sentido do caminho, acordo, desacordo, compreensão. A relação não-Télica resulta no "coração em desalinho". Obrigado aos poetas de sempre e de agora.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Psicodrama e Natal

  A origem do Natal está nas comemorações do Solstício de Inverno no Hemisfério Norte. Solstícios são os pontos da trajetória terrestre em que os hemisférios estão mais próximos (verão) ou mais distantes (inverno) do Sol. Assim, para as tradições místicas do Hemisfério Norte, esse período era quando, em seu hemisfério, Dezembro, a inclinação da Terra em relação ao Sol, voltava a se aproximar, quando o Inverno anunciava o seu fim, quando as esperanças de um novo plantio, de um degelo, surgiam, respondendo à expectativa da espera. Nas tradições místicas isso era o símbolo da renovação, do anúncio de um novo tempo. Avatares e deuses eram comemorados nesse dia. Krishina, Mitra, por exemplo. Por isto a tradição cristã aproveitou-se desse simbolismo. E isso que tem a ver com o nosso Psicodrama/Teatro Espontâneo? Nada. E tudo. Moreno, o criador do Método Socionômico (Psicodrama, Teatro Espontâneo, Sociodrama) era um judeu imbuído das tradições judaicas, principalmente da filosofia hassídica. E esse Hassidismo tinha por base a renovação, a fé na transformação, a esperança de um recomeço. Socionomia, Sociodrama, Psicodrama Morenianos são sempre fundados nessa atitude de mudança, transformação, um novo olhar, uma nova chance, um outro começo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Walt Disney e J.L.Moreno

 Assistindo a um documentário sobre Walt Disney e seu projeto de Disneyland e Disneyworld, um dos participantes cita uma frase que o Walt sempre repetia e cobrava dos roteiristas e todos os Imagineers. Ele usava esse neologismo, junção de Imagine e engineer, e dizia: "A história tem que guiar a experiência". O roteiro precisava guiar a experiência do usuário dos parques. Assistindo, minha mente levou-me à Moreno. Ele dizia que, diferentemente do Teatro formal, no Psicodrama o protagonista/ator criava sua própria história a partir de sua própria experiência de vida. Para Disney, a História guia a experiência do usuário. Para Moreno o protagonista usa sua experiência existencial para criar sua história.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Onirodrama, Mia Couto

 

Nenhum sonho se pode contar. Seria preciso uma língua sonhada para que o devaneio fosse transmissível. Não há essa ponte. Um sonho só pode ser contado num outro sonho. 

O outro pé da sereia- Mia Couto 

Esse livro de Mia Couto ainda não li, mas vi essa citação. E, por si só, me fez viajar. Mia chama a atenção para uma particularidade muito conhecida dos sonhos. Contá-los é bastante complicado. pela condensação das imagens, pelo ritmo, pelo anacronismo, pela superposição de cenas e personagens. Enfim, é uma experiência cotidiana que contar um sonho, transpor a linguagem onírica para a fala organizada é difícil. O Psicodrama tem uma forma de lidar que denominamos de Onirodrama. A característica principal, à semelhança do que diz Mia Couto, é dramatizar o sonho sonhado e transformá-lo em sonho que está sendo sonhado. Em lugar de contar o sonho o Diretor/Condutor pede que o protagonista construa seu local de dormida, com detalhes bem detalhados, como forma de aquecimento específico, assuma a posição habitual que assume ao deitar e inicie a atuar o sonho. As cenas vão sendo desdobradas. Cada elemento que aparece em cena pode ser explorado em outras cenas. O Onirodrama é a dramatização do sonho. É imperativo que o protagonista não inicie a narrar o sonho. Por que? Porque ao narrar nós impomos uma sequencia e uma lógica narrativa.É importante, é vital, para o Onirodrama que haja o frescor da cena atuada ex-novo, com o frescor da cena nova. Mia Couto tem razão.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Poetas, Psicodrama, Perdas

 Um comentário de uma amiga, Luiza Barros, numa postagem sobre as perdas recentes de ídolos musicais de toda uma geração, ela disse:"a tristeza será companheira de quem sobrevive". essa frase não me deixou dormir sem refletir muito. é verdade, o preço de estar vivo é ser testemunha de perdas. Há um conto antigo de Jorge Luis Borges em que ele fala do encontro com grandes figuras do passado que tinha ficado eternas. E essas figuras relatavam o quão duro é permanecer quando os nossos outros passam. Li, em algum lugar, que há culturas que consideram a morte apenas quando não há mais memória de quem foi, quando não há lembrança mais. Fernando Pessoa diz: "Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada". Ver, rever, lembrar, ter lembranças, recordar, para os que ficam é a forma e maneira de manter vivos os que que já não são. Ou estão. No palco do Psicodrama é possível lidar com as perdas, em tempo real, na realidade suplementar da verdade dramática, e estabelecer diálogos e ações impossíveis na realidade real. Os poetas falam dos que foram. O Psicodrama fala com quem está.

"Não tenho preferências para quando não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é" A. Caeiro/F.Pessoa

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Só, sozinho

  Assistindo ao filme clássico Fogo contra fogo, com os grandes Al Pacino e  Robert De Niro, há uma fala da personagem de De Niro: "I'm alone, but I'm not a lonely man". "Sou sozinho, mas não sou um solitário". E isso me pôs a pensar. Estar só, sentir-se só. Sozinho, solitário. Estados de espírito não iguais, muito diferentes. Estar só é algo espacial, geográfico. É não ter pessoas em volta. Apenas isto. Sentir-se só é outra coisa. Nada tem a ver com quantidade de pessoas. Sentir-se só é consequência  de uma pobreza relacional. Solidão é não ter vínculos com nada. Uma pessoa isolada geograficamente vive e sobrevive das certezas de seus laços afetivos, das lembranças e desejos. Sentir-se só, o estar em solidão, é reconhecer a inexistência, é sentir o peso da ausência de vínculos que o ancore com o mundo. seguindo Zeca Baleiro, o canastrão, ao contrário do ator verdadeiro, não cria vínculos entre sua personagem e a platéia. Por isso, ao cair do pano, o ator tem os aplausos e o sentimento vindo da plateia. Está só, mas não se sente só. O canastrão está sozinho. E solitário.

"Eu 'tava só, sozinho

Mais solitário que um paulistano

Que um canastrão na hora que cai o pano" 

Zeca Baleiro

"É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,

É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte"

 Fernando Pessoa

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Papéis, subjetivo, objetivo

 Há palavras em Psicodrama que uso frequentemente, mas acho que poderiam ser mais frequentemente usadas. E compreendidas. Um dos conceitos fundamentais em nosso método  e ponto de vista existencial, o Psicodrama Moreniano, é o conceito de Papel. Percebo que muitas vezes quem utiliza talvez não alcance a profundidade do conceito. Em inglês, a palavra é Role. Fica mais fácil entender sua origem. Em começo, no Teatro, tudo da personagem, texto, gestual, expressão verbal, adereços, estavam escritas e guardadas em Rolos de papel. Daí, do francês obsoleto roule veio o Role inglês. Então, a palavra e conceito advém do teatro. Texto a ser atuado pela personagem, como todas as indicações para seu melhor desempenho. Moreno, apaixonado por teatro, puxa essa palavra e amplifica e aprofunda o conceito que essa palavra representa. Do ponto de vista Moreniano todas as relações se fazem por meio de papéis. Não ná um contato real e atual entre os dois Eu de uma relação. Ele, Moreno, diz serem os papéis a parte tangível do eu. Tangível é o que toca ou pode ser tocado. Então, se as relações se estabelecem entre papéis, e se o papel é a totalidade de texto, adereços, entonação, afetos, da personagem, quando nos relacionamos os papéis podem e devem flutuar. A personagem é a mesma, porém desempenha papéis diferente. A personagem Pai pode estar no papel de protetor, cobrador, autoridade, suporte, companheiro, confidente e tantos  outros. Mesmo nos papéis profissionais em que a flexibilidade é menor (e isto acontece porque a relação médico paciente, p.ex., se faz nessa demanda, especificamente), é possível que a dimensão subjetiva do papel possa burilar e revestir o papel profissional de outras características. Daí essa ideia moreniana de perceber os papéis como tendo uma dimensão objetiva, socialmente prescrita, e uma dimensão subjetiva, que traz em si, inscrita em seu corpo, toda a sua história pessoal. Isso é que faz com os desempenhos dos mesmos papéis sejam tão diferentes dependendo da personagem que o exerce.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Tempo. Outra vez

Voltando à questão do tempo em Psicodrama. O tempo cronológico, o Chronos grego, o tempo marcado pelo relógio, é o intervalo entre dois acontecimentos, O tempo vivencial, o Kairos grego, o Momento Moreniano, é o estado de vivenciamento pleno de uma situação. Por isso, há frequentemente, uma distorção, entre a suposição de tempo decorrido em um Momento Moreniano e o que o relógio marca. "Puxa, só foram 40 minutos, pareceu muito mais, foi tão bom!". Ou o seu inverso "Só tem quinze minutos dessa aula? Parece um século!". As relações humanas não podem ser formatadas numa única exigência: precisa-se de tempo (cronológico) para isso acontecer. Para se conhecer bem algo, para se alcançar um ápice terapêutico, para se vivenciar uma relação profunda a duração não é o critério fundamental. Uma psicoterapia não será, necessariamente, melhor porque já dura há 20 anos. E o que acontece em menos tempo cronológico, não será necessariamente pior ou mais superficial. Esse é o cerne do problema. O tempo cronológico pode ou não ser profundo. O tempo Kairós, o Momento Moreniano, será sempre profundo e significativo. nas psicoterapias vivenciamos o tempo cronológico, já que há um horário a ser cumprido. mas, também, experimentamos, por vezes, Momentos em que atingimos o alvo afetivo e cognitivo. Em que o significado e valor daqueles poucos instantes cronológicos têm tanta repercussão vital. E nas relações afetivas o mesmo ocorre. 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

palavras, conceitos

 "Eu já sei o que eu penso sobre esta palavra. Mas quero saber sobre o que vc pensa". "E voce, se quiser, e estiver interessada, saberá sobre o que eu penso". Isto aconteceu em uma sessão psicoterápica. A pessoa usava palavras e, em um momento, lhe fiz essa observação. Pedi que fosse  demonstrando, dramatizando, cada uma das palavras que usava e, depois, eu fazia o mesmo com o meu conceito sobre aquela palavra. Esse momento foi muito importante para o avanço da psicoterapia. permitiu-nos, a mim e a ela, compreender dramaticamente, no palco, enxergando e escutando, que as palavras podem ser usadas igualmente. Mas, nunca sabemos, antecipadamente, o que aquela palavra representa como conceito. PS. depois, no seguir da psicoterapia psicodramática, ela , brincava, dizendo: "você é chato. Quer aprofundar tudo!"

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Agradar e desagradar

 Com um paciente em psicoterapia, conversando sobre uma possível celebração de seu aniversário, construímos um jogo de palavras. Eu pedi que que considerasse se uma comemoração seria algo de seu desagrado ou não seria de seu agrado. Proponho, agora, com quem me lê, que construamos, em nossa paisagem mental, uma cena que seja de meu inteiro desagrado, que mexe desagradavelmente comigo. E depois coloquemos a seu lado, na tela mental, uma outra cena que não seja de meu agrado, embora perceba seu valor. Perceba se há diferença subjetiva. Se o seu sentir tem nuances, se seu corpo reage diferente. Pense que nossas escolhas não são apenas pelo que queremos ou desejamos, talvez sejam pelo que não nos violenta, não nos destrói.  Pode não nos agradar, mas não nos desagrada nem nos degrada, mas agrega.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Expectar e esperar

 Esperar, ter esperança, expectar, ter expectativa. Embora palavras de etimologia próxima, talvez possamos brincar um pouco com elas. Iniciemos por expectar. Parece-me que expectar é a espera de forma ansiosa. Expectar é formular  uma imagem e aguardar que ela se concretize. Esperar, ter esperança, é abrir-se para o novo, deixar-se surpreender pelo inesperado. A expectativa pode ser frustrante. O futuro ao chegar pode não corresponder à imagem criada, à expectativa criada. Ter esperança, esperar, apenas esperar, sem imagens antecipadas, é como a criança que absorve o mundo como ele se apresenta. O adulto, expecta. A criança espera. A angústia do adulto está na expectativa da chegada do imaginado. A alegria da criança está em receber,  é alegria do que simplesmente virá. Com essa visão poética podemos pensar o Psicodrama/Teatro Espontâneo com o olhar da espera pueril, de aguardar o que virá sem preconcepções. Tomar o que vem não pelo que não foi, mas pelo que é. E isso, não tão poeticamente, é a atitude fenomenológica: Não expectar e frustrar-se, mas esperar e ver.

“Uma criança é inocência e esquecimento, um novo começo, um jogo, um moto-contínuo, um primeiro movimento, um “sim” sagrado. Para o jogo da criação um “sim” sagrado é necessário”. Nietzche
"Não deixe que a próxima vez saiba demais sobre as vezes anteriores"  Moreno

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

fundamentos e fundações

Um amigo, psicodramatista, me disse que ele estava tendo dificuldade de editar seu livro porque as editoras só viam possibilidades de venda para manuais de como fazer Psicodrama.  E o livro dele é de reflexão sobre os fundamentos do Psicodrama/Socionomia. É. Isto em qualquer área de atuação seria um problema. Agir sem fundamentação, o fazer, apenas, transforma-se em ato mecânico. Sem se conhecer e aprofundar-se nos fundamentos é como preocupar-se em construir um edifício muito bonito , mas sem ter escavado para as fundações. Aliás, é um bom símile. Na construção, necessariamente, se começa indo para baixo, cavando fundo. Em qualquer construção, trata-se de uma etapa longa, em que não se vê o "progresso" da obra. Considerando, nesse caso arquitetônico, que "progresso" é ver subir a obra. Trazendo ao nosso campo, "ver subir a obra', "progresso", seria fazer o psicodrama, exercitar as técnicas. O escavar para baixo, estabelecer as fundações da obra, seria o equivalente a estudar-se a filosofia Moreniana, os laços filosóficos do Psicodrama/Sociodrama/Socionomia. Corporificar a Espontaneidade/Criatividade. Fazer com que a técnica psicodramática esteja a serviço de uma atitude humanista, solidária, grupal, amorosa, participativa, compreendendo que cada um e todos são corresponsáveis pelo grupo/mundo. Sempre é necessário buscar as raízes de nosso Sociopsicodrama, de nossa Socionomia. Árvores sem raízes, edifícios sem fundações sólidas, métodos psicoterápicos apenas práticos, necessitam de escora, de apoiar-se em mais alguma coisa. Nossa Socionomia tem raízes, tem fundações, tem fundamentos, tem modos próprios de enxergar e atuar no mundo. Mas, nós é quem precisamos acessar essas raízes, sempre e sempre. São elas que nos possibilitam o salto criativo, o Role-Creating, a criação no papel, e não apenas a aplicação bem feita de técnicas conservadas.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O Encontro

Se há palavra associada ao Sociopsicodrama, à Socionomia, à Sociometria, ou seja à toda a obra de Moreno, essa palavra é encontro. Em geral, quando nós escrevemos o fazemos assim Encontro, com a maiúscula inicial. Talvez porque, como dizia o Poetinha Vinícius, "A vida é a arte do Encontro, embora haja tanto desencontro pela vida". Pela vida há encontros, esbarrões, conhecimentos. O Encontro não é apenas o ato de duas pessoas se encontrarem, eventualmente, num lugar qualquer. Por isso a inicial maiúscula. O Encontro Moreniano é quando duas pessoas, num dado instante, harmonizam suas vidas, suas histórias não contadas e contadas, suas vozes, sua complementaridade em ação. Esse Encontro é de duas existências, dois viveres, dois sentires, dois perceberes, dois agires. Não é um esbarrão. Por isso, quando acontece, se acontece, é tão pleno para quem o vive. Pode até ser outro nome para amor, não saberia diferenciá-los, mas sinto haver uma diferença, embora não consiga agora torná-la explícita. Os encontros e desencontros são constantes e até regulares. Mas, os Encontros são peças raras em nossa mala de sentimentos. E para ele acontecer, não sendo programado nem programável, o que ele precisa é que se deixe acontecer. Haja Morenianamente a Espontaneidade para deixar fluir essa possibilidade humana tão preciosa. O Poetinha tinha razão; É uma Arte esse tal de Encontro.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Alma Psicodramática

Nesse nosso recém encerrado congresso de Psicodrama voltei a ter em mente uma das formas de apresentação dos Atos Socionômicos: Além do Sociodrama, Psicodrama, também o Axiodrama. Axio em grego é eixo. Axiodrama, assim, é um ato socionômico voltado para o nosso eixo ético. O eixo dos valores humanos, não dos atos humanos, mas daquilo que preenche seu conteúdo humano. Aquilo pelo que se vale viver e até morrer. O nosso poetinha Vinícius em uma das suas letras com Toquinho diz: "Se é pra desfazer porque é que fez". O valor da vida não é natural. Natural é sobreviver. Mas, dar significado à vida é nossa tarefa humana. O verso do Poetinha pode levar a um beco sem saída existencial: "se tudo vai acabar mesmo,  então por que começar?". O significado dado pelo ser humano torna cada segundo precioso. Não é preciso chegar-se ao fim para ter que ponderar se valeu a pena ou não. Fernando Pessoa diz em verso conhecido: "Tudo vale a pena se a Alma não é pequena". E qual o tamanho da Alma do Psicodrama? Que valores éticos dão sustentação à metodologia psicodramática? Para que fazemos o que fazemos? Moreno, criador do Psicodrama, iniciou sua vida pela ética humana de solidariedade, depois foi caminhando para a vertente clínica e social. Sem sua Alma ética, sem seu eixo filosófico, sem os princípios do Encontro, sem seu conteúdo verdadeiramente amoroso de inclusão das diferenças, o Psicodrama não se diferencia de outras abordagens. Nosso recente Congresso foi um grande Ato Axiodramático. Talvez re-fundante de nossa Alma Psicodramática.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

vaidade existe?

 Como fica a vaidade humana na pele do Diretor de Psicodrama, condutor de grupo? Há um sinônimo que é fatuidade, cuja definição, "qualidade do que é efêmero, pouco importante", talvez explique melhor nosso problema.  O Diretor/condutor de um grupo é o primeiro membro do grupo a estar presente, é o membro do grupo que se torna o ponto focal para o aquecimento grupal, organizador, produtor e analista do grupo. Portanto, um papel essencial, fundamental. Mesmo em grupos autodirigidos, alguém se destaca, por estar mais aquecido, para lidar com a situação. Nesses grupos autodirigidos apenas não há o papel previamente determinado, de diretor. Mas o papel existe. Quando me refiro à vaidade, fatuidade de quem exerce o papel de Diretor grupal psicodramático, estou-me referindo ao poder inerente à função. É um poder efêmero, mas não é pouco importante. Penso ser sempre necessário a quem conduz grupo ter em mente isso: Não se deixar levar pelo brilho, poder ou, simplesmente, prazer em manipular o grupo. Moreno foi sábio quando insistiu em que o Diretor faz parte do grupo, é atravessado pelas mesmas correntes daquele grupo. O que o coloca no papel de Diretor, e o mantém, é estar diferenciado o suficiente para perceber todas as nuances de fluxo, contrafluxos, ocultamentos, dificuldades, expressas pelos membros do grupo e pelo próprio grupo. Esta postura crítica e diferenciada em relação a si, deixar-se ser atravessado e perceber o atravessamento, ajuda a ser o contraponto da natural vaidade humana. E isso, além do Psicodrama, também se refere a todos os outros grupos humanos.

sábado, 13 de agosto de 2022

Psiquiatria e Psicodrama

 Quando uso um adjetivo, sua função é a de delimitar e qualificar um substantivo. Um navio verde não é todos navios, é apenas o navio verde. Quando digo que sou Psiquiatra Psicodramatista, não estou dizendo que sou Psiquiatra E Psicodramatista, dois substantivos separados. Estou dizendo que ao modo de exercer o papel de psiquiatra agrego um modificador, um qualificador: Psicodramatista. Todos os papéis sociais têm um denominador coletivo e um diferenciador subjetivo. Neste caso o diferencial é a atitude, o olhar psicodramático.

A prescrição, a medicação, a possível internação, a vigilância, o diagnóstico, nada disto é diferente do psiquiatra não psicodramista. O que difere é o como. Reconhecer que mesmo investidos de um poder aparente (muitas vezes real) continuamos a ter no paciente psiquiátrico uma outra pessoa, em um papel complementar, com seus quereres e haveres. Ter claro que se trata de um vínculo assimétrico (eu prescrevo, ele ingere) mas que continua sendo um vínculo complementar. Naquele momento, naquele contexto, naqueles papéis, estamos estabelecendo uma relação. O psiquiatra dá o remédio mas é o paciente quem o toma. E que mais é o remédio psiquiátrico que um Ego Auxiliar químico? Por algum tempo, por muito tempo ou por todo o tempo, o remédio irá suprir o paciente com algo que neste instante ele não o tem. Ela, a medicação, nem é Deus nem o Diabo na Terra do Sol.
Antes da prescrição, entretanto, há a consulta. De regra, o paciente psiquiátrico não vem à consulta. Ele é trazido, levado, empurrado, obrigado. Quase nunca desejoso de ali estar. Como, então, estabelecer um vínculo com ele? A minha primeira pergunta, sempre, ao paciente é: “Como você se sente agora neste consultório psiquiátrico?” É a partir daí que pode se estabelecer nossa relação. Neste instante aparecem as dúvidas, os preconceitos, os medos, as imposições e chantagens familiares, as piadas. Posso passar, e às vezes passo, quase toda a consulta discutindo sobre este tema ainda sem perguntar a razão da vinda ou da “trazida”. Quando ultrapassamos este ponto, sempre ou quase sempre, já teremos criado uma relação vincular. “Eu conheço Psiquiatria mas você conhece a sua Vida”. É assim que manifesto a assimetria de nosso vínculo.
Ele sabe mais de si do que eu. Eu sei mais de doenças que ele. O que proponho é que juntemos os nossos conhecimentos e transformemos nosso encontro em alguma coisa útil e prazerosa. Neste encontro uso todos os recursos que o Psicodrama nos dá. Seja pedindo seu solilóquio em um momento de silêncio, seja dando voz a um gesto significativo, seja realizando um duplo em um outro silêncio. Principalmente, é não ficando preso à cadeira de médico. A mobilidade corporal do Diretor Psicodramático incorporada no psiquiatra aparece numa ida à janela com o paciente, em uma caminhada pelo consultório durante a entrevista. Ele sabe mais de si do que eu. Eu é que preciso me esforçar para suprir esta lacuna. E nisto está a questão da confiança. Ela não é dada, é construída. Por que deve um paciente contar a uma outra pessoa que nunca viu e sabe apenas que é médico (quando sabe!), detalhes íntimos, perturbadores, vergonhosos, pessoais? Por que o paciente tem que falar tudo ao médico psiquiatra? “Ele é seu amigo, conte tudo a ele”. Assim falam os acompanhantes. Por isso, nestes momentos da consulta, eu me apresento, digo a ele quem sou, onde e como me formei, quais meus pontos de vistas sobre psiquiatria. No papel social de psiquiatra, abro e exponho ao paciente que psiquiatra sou eu. Tenho uma biblioteca em meu consultório. Frequentemente peço ao paciente para ir lá ver o que tem e trazer algo que lhe interesse. Às vezes um livro, às vezes um objeto de decoração, uma revista. “Veja a minha biblioteca e você vai conhecer um pouco de mim”. Quando voltam, nós temos algo em comum, já podemos falar “nós”.
Sou Psiquiatra psicodramatista para aqueles que me procuram no papel de paciente psiquiátrico. Posso ser, entretanto, Psicodramatista Psiquiatra quando no curso de uma relação psicoterápica configura-se uma síndrome psiquiátrica. Se concluirmos, eu e ele, e entendermos eu e ele, que o remédio será uma utilidade, uma necessidade, haverá a prescrição e o acompanhamento clínico se dará como mais um dos fatos da vida do paciente que trabalharemos no palco psicodramático.
Finalizando e resumindo, o exercício da Psiquiatria Clínica pode ser profundamente enriquecido, sem que se transforme em uma psicoterapia “selvagem”, com a visão Psicodramática do Encontro, do Vínculo, da Complementaridade de Papéis e da Corresponsabilidade.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Analogia

 Fernando Pessoa diz em Mensagem que o "O mito é o nada que é tudo". Pegando essa afirmação talvez possamos dizer que uma analogia é um nada que é tudo. Analogia é uma relação de proporcionalidade que, entretanto, só existe nessa relação proporcional. "Uma tampa de caneta está para uma caneta assim como um chapéu está para uma cabeça". Essa é a parte desenvolvida da analogia "cadê minha tampa de minha cabeça" ao procurar meu chapéu. Exemplozinho meio fajuto, mas talvez, dê para entender. Não há nenhuma relação concreta e real entre tampa e chapéu. São coisas diferentes. Mas, ao estabelecermos uma analogia, criamos uma relação que é real enquanto dure. No Psicodrama e todas as atividades socionõmicas, as dramatizações são analógicas. Elas não são "reais'. Ali, no palco, durante a cena, se estabelece uma relação de proporcionalidade, de analogia, entre o que houve, entre o que se teme, e aquela cena. E nesse momento faz sentido. Há uma verdade poética, como dizia Moreno. A cena psicodramática é "um nada que é tudo".

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Psiquiatria/Psicodrama

 Há mais de 30 anos estou envolvido e ligado ao Psicodrama. Há mais de 45 anos estou envolvido e ligado à Psiquiatria. São dois lados de um mesmo lado, são ponto e contraponto do meu fazer. Sou um psiquiatra psicodramatista e sou um psicodramatista psiquiatra. Quando um está em cena, o outro é seu ego auxiliar. E vice-versa. mas o Psicodrama deu ao meu fazer psiquiátrico uma qualidade inteiramente diferente. Deu-me a consciência e vivência de que eu e o meu paciente somos papéis complementares. E isto me permite e concede liberdade para sempre poder fazer o melhor naquela circunstância, contando, sempre e sempre, com a coparticipação de meu papel complementar. Horas, estando no papel de psiquiatra,  sou o escada para a cena do paciente, horas aquele que está no papel de paciente torna-se o escada para o meu sketche. Somos complementares em papéis diferenciados ou por se diferenciar. Quando quem está em cena é o psicodramatista, o conhecimento médico e psiquiátrico participam do meu olhar, de minhas analogias, minhas escolhas de diretor de psicodrama, de meu labor psicoterápico. Psiquiatra psicodramatista, Psicodramatista psiquiatra. Somos dois em um, um em dois.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Entropia e aquecimento

 Eu gosto de Física. Os conceitos e o pensar da Física são muito e muito úteis para o dia a dia, fora de laboratório ou ciência aplicada. Entre eles o conceito de Entropia que diz que todo sistema que não esteja isolado tende a aumentar sua desordem, ou seja diminuir sua energia disponível para realizar trabalho. Quando mais desordem, menos energia disponível,  mais caos. Transpondo, com respeito aos limites de uma analogia, é assim também com um agrupamento de pessoas. A energia de organização do caos, capaz de diminuir a entropia, em Psicodrama seria o aquecimento. É o investimento que o diretor/condutor daz para se contrapor à tendencia do agrupamento de se desorganizar. Na definição formal de entropia diz-se que é a diminuição crescente da energia capaz de realizar trabalho. Num agrupamento em caminho de formar um grupo, quanto mais aquecido está mais o grupo está disponível para envolver-se e dramatizar. Sem o devido aquecimento, não há grupo formado, não há energia disponível para realizar trabalho, não há possibilidade de dramatização.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Nada, apenas nada

Estou agora diante da tela como um diretor/condutor de psicodrama quando ele e o grupo estão "sem assunto". Aí é que se começa a forçar a barra racionalizando o que fazer. As propostas não vêm de forma espontânea e, sim, para a suprir o desconforto do silêncio. Então, o que fazer? Talvez, apenas talvez, eu começasse por um solilóquio (quando expresso alto o que está passando por mim, em sentimentos e pensamentos, sem ponderações). Talvez, apenas talvez, eu dissesse , "estou me sentindo vazio, sem ideias, me sinto pressionado pela obrigação de ser diretor/condutor, fico constrangido em estar paralisado, quanto mais eu forço não aparece nada para fazer". Talvez, apenas talvez, alguém, espontaneamente, iniciasse o seu solilóquio. Talvez a esse sucedesse outro e outro. Mas, talvez, apenas talvez, os membros do grupo ficassem em silêncio. Talvez, apenas talvez, eu convidasse uma ou outra pessoa a fazer o seu solilóquio. E aí, talvez, aquele congelamento, aquela paralisia, se desfizesse, porque já teríamos um que fazer em grupo. Isso mostra que o diretor/condutor também é parte do grupo, também é membro do grupo, apenas deve estar mais diferenciado em seu papel para perceber seu mal-estar. E ter a liberdade (espontaneidade) de abrir-se para o grupo. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Tamanhos relativos

 Todo organizador de festa sabe que o tamanho do espaço tem que ser proporcional ao tamanho do público. Um espaço grande para um público estimado pequeno passa a impressão de festa vazia. Um espaço pequeno para o público convidado transmite a ideia de aperto, desconforto. Um trabalho grupal, produzir um trabalho grupal também precisa levar em conta a relação entre espaço e público.  Um grupo de cinco pessoas em um salão, grande, tem mais dificuldade para " dominar" o espaço. Vinte pessoas em uma salinha dificulta a movimentação, atrapalha o aquecimento corporal. Mas, isso posto, há que se levar em conta que nem sempre se pode escolher o espaço onde se trabalhará. Portanto, o recurso disponível para o Diretor/Condutor é o reconhecimento do espaço no aquecimento. Movimentar-se por todos os cantos, emitir a voz de todos os lugares possíveis (e impossíveis!), experimentar o mínimo espaço ocupado pelo corpo. Em última análise, o palco, o espaço cênico é o espaço de nosso corpo. Assim, seja pequeno, apertado, grande, espaçoso, o corpo sempre ocupa e cria o seu próprio espaço territorial e cênico.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Desenhos, Malas e Viagens

 Há muitos anos li, era criança, em pé-de-página da revista Seleções,  esta frase de John Gardner: "Viver é a arte de desenhar sem borracha". O desenho pode ser iniciado com a intenção de um barco, mas aparece uma linha curva e o desenho vai-se tornando uma onda no mar. Vai-se aproveitando cada traço, planejado ou acidental, para um desenho final que faça sentido, ao terminar. O escritor Fernando Sabino contava que o seu avô dizia que "as malas se arrumam no bagageiro durante a viagem." No Psicodrama isto seria denominado de ato espontâneo-criativo. Espontaneidade não é, definitivemente, fazer o que se quer, pura e simplesmente. Espontaneidade é como John Gardner e o avô de Fernando Sabino diziam: É poder estar aberto para o que acontece, é poder mudar de plano A para plano B ou C ou Z. É poder escutar e enxergar a circunstância. Isto, quando acontece, fornece à criatividade um terreno mais amplo de possibilidades. Espontaneidade é uma autopermissão para a criatividade fazer a melhor escolha para aquela cena, momento ou circunstância. Dirigir no Psicodrama é isso.

domingo, 29 de maio de 2022

Mia Couto

 "E ainda mais se explicou: primeiro, não fomos nós porque éramos filhos. Depois, adiámos o ser porque fomos pais. Agora, querem-nos substituir pelo sermos avós." O fio das missangas, Mia Couto. Esse período de Mia Couto me chega no momento em que sou avô pela terceira e quarta vez. È trecho de um conto curto, denso e doloroso.  Como estou em plena fertilização desse papel, avô, me remeteu ao olhar psicodramático. Toda interação se dá por meio de papéis. Ou seja, o papel é a condensação de fala, conteúdo, afeto, gestual, na interação. Como um papel teatral, os papéis modificam-se à medida que o papel complementar se altera. Com um aluno, sou professor. Com meus filhos, sou pai. Com os amigos sou amigo. Com o chefe, sou subordinado. Com o subordinado, sou chefe. A interação entre papéis é mediada pelo vínculo. Portanto, quanto mais me vincular a múltiplas pessoas e interesses,, mais papéis desenvolverei. A cristalização de um papel, o tornar-se único, faz-nos compreender a escassez, a pobreza vincular, daquele que tenha esses papéis, cristalizados, tornados únicos. Pobreza de papéis = pobreza de vínculos. Naquele conto de Mia Couto, o doloroso é perceber como o personagem resumia sua vida a papéis familiares, em que cada um sucedia ao anterior e o aprisionava até o próximo. Uma sucessão de ilhas afetivo vinculares. Prisão e revolta. A personagem diz "adiámos o ser...". Para a visão socionômica o ser é sempre relacional, ele se constitui com o outro. O ser não é anterior ao outro. Ele nasce deste encontro. Menos encontros, menos vínculos, menos papéis, menos sensação de ser.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Itabira e o sósia

Conversando com um paciente, ele falou de alguém que havia encontrado um seu sósia. De imediato, retruquei: "O sósia se parece mais com você do que vc mesmo!". O paciente olha para mim com cara espantada e pergunta: "Como assim?". Resposta minha: "É que o sósia é cópia da imagem que está na memória de quem o conheceu há muito tempo. O sósia é uma imagem sua que não se alterou pelo tempo nem pela suas vivências pessoais". Quando vemos um sósia o termo de comparação é a nossa imagem mnêmica do passado que não se transformou. A pessoa real, no presente, é aquela imagem mais tudo o que lhe aconteceu. O sósia a imagem conservada na memória. E esse termo, Conserva, é uma palavra que se refere a um conceito Moreniano referindo-se a nossa relação com os fatos culturais. Quanto uma determinada obra de arte se transforma em "A Obra De Arte" ela corre o risco de virar uma conserva cultural, no dicionário psicodramatiquês. Algo estático, icônico. Ícone em grego é imagem, figura. E isso também acontece com a nossa narrativa de vida, nossas perdas, nossos ganhos. Também eles tendem a se cristalizar em conservas. Quando Carlos Drummond de Andrade refere-se a Itabira, sua cidade natal, como "É apenas um retrato na parede. Mas como dói!", ele esta transformando uma conserva cultural numa vivência pesoal.  "Desconservando" o "apenas um retrato na parede" para uma relação íntima com seu passado, suas histórias, seu presente e suas dores. E quem faz esse papel terapeutico é o "Mas" do verso, a abertura de outras formas de vivenciar o já vivido. Isso é psicoterapia. Isso é Psicodrama.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Tentar e experimentar

Ao escutar qualquer paciente dizer:  "Vou tentar fazer", costumo retrucar: "Experimente em vez de tentar!". Em seguida, em geral, digo, "Tentar é álibi para não conseguir". E há, psicodramaticamente, uma profunda diferente. A pessoa, ao usar a expressão "vou tentar", absolutamente, não se põe verdadeiramente, a agir. E está sempre com "um pé atrás", capaz de parar, interromper sua ação a qualquer momento, por qualquer dificuldade ou empecilho. Sua alma não está na ação. Ao experimentar a alma encarna-se na ação. Para evitar ou ajudar a que isso não aconteça, é que no Psicodrama e em todas ações Socionômicas inicia-se pelo aquecimento. No começo para situar a pessoa ou o gupo a se situar no espaço-tempo do palco. Depois, ao aparecer o protagonista do grupo ou iniciar-se a dramatização do protagonista em atendimento Bipessoal, é necessário aquece-lo, ou seja, prepará-lo para a dramatização. No tempo e espaço da ação. Todo esse tempo investido no aquecimento tem seu resgate na dramatização. Aquecido, o protagonista experimenta verdadeiramente, a segunda-vez do fato, vivencia, dentro da realidade suplementar, como real, o dramatizado. Não há tentativas. Há experimentações à vera. 

sexta-feira, 29 de abril de 2022

situação ideal?

 Esperar a situação ideal é ilusório. O método Psicodramático ou Socionômico pressupõe que tomemos a realidade tal como ela se apresenta. O Diretor/Condutor não carrega o grupo, não é o responsável solitário pelas decisões e escolhas; cabe ao Diretor/Condutor, seguindo o método Socionômico, ter sempre em mente que ele é membro do grupo, em papel diferenciado; trazer para o grupo os problemas e dificuldades porque ao grupo cabe encontrar a forma melhor e adequada de lidar com estes percalços. Enfim, o método Socionômico é a nossa ferramenta para lidar com as dificuldades operacionais. Há que se viver o método, tornando-o parte inerente do exercício de todos, todos mesmos, instantes da atividade grupal. Ou seja, dificuldades e problemas podem ser aquecimento para a próxima cena. Limitar-se ou desesperar-se por acidentes, esvaziamento do interesse, desaquecimento, é, com certeza, levar uma situação grupal difícil a uma situação grupal impossível. Isto faz parte das funções do Diretor/Condutor: estar atento ao ritmo, ao aquecimento, ao interesse grupal, a si mesmo, enfim.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Rir de, Rir com

Conversando com uma psicodramatista (Penha) sobre um post dela, escrevi essa frase: rir com não é rir de. Escrevi, porque é o meu jeito de pensar. Mas, também fiquei refletindo. Quando as pessoas estão em um agrupamento há sempre quem diga "não  gosto de me expor, vou só observar". Expor-se é sentir-se no centro das atenções, ficar na berlinda. Depois do aquecimento inespecífico em que o então agrupamento torna-se grupo, acontecem jogos dramáticos, dramatizações, catarses, e, ao fim, quando compartilhamos os, já agora, membros do grupo, sentem-se exatamente isso: partes de um todo grupal. E, ao se perguntar, qual a diferença desse momento  para o inicial, aquelas pessoas que haviam externado o medo de se expor e, entretanto, foram protagonistas das ações dramáticas, dizem, "agora foi diferente,  eu nem me percebi exposto". O que aconteceu? Mágica: não. Para haver exposição ou sentimento de estar exposto é necessário que haja um que olha e um que é olhado, um de fora olhando e um de dentro sendo olhado. Ao se promover o aquecimento, ao se grupalizar, ao se transformar um agrupamento em um grupo, deixa de haver a dicotomia eu e o outro. Jamais será "rir de". Será sempre rir com, chorar com, ter raiva com, ter carinho com. O Grupo é Nós.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Deborah, Psiquatria, Psicodrama

 Chegando, devagar, aos 70 anos, tive a minha maior experiência estética-mística-afetiva-filosófica-psiquiátrica-psicodramática. Assisti, pela segunda vez (na estreia e agora) ao espetáculo de Débora Colker - A Cura. Como dizia Moreno - A segunda vez liberta a primeira - esta segunda vez me pegou além da magnífica experiência estética da primeira. Dessa vez a expressão hebraica Hineni - Eu estou aqui - foi a chave que abriu meu portal pessoal. Na criação de Débora trata-se da relação do ser humano com a sua dor. Mas, isso me levou além, muito além do horizonte. Na Psiquiatria, no Psicodrama, todo o tempo nos encontramos diante da relação do ser humano com sua vivencia temporal. O existir é no presente, o presente é. Sem mais. Entretanto, a pessoa tem memória, que nos liga ao passado e o cria. E tem imaginação, que nos liga ao futuro e o cria. E a memória constrói sua versão dolorosa, a culpa. E a imaginação constrói sua versão ameaçadora, a angústia. Ao viver pendulando entre a culpa e a angústia, entre o passado que devia ou podia ter acontecido, e o futuro, que nos ameaça de acontecer, o ser humano sai de seu presente, onde realmente existe. No Psicodrama, Moreno e Zerka sempre insistiam para todos as dramatizações acontecerem no tempo presente, não contadas no passado ou no futuro. Não como isto aconteceu ou acontecerá. Mas, como "está acontecendo". Ancorando a pessoa no seu presente. E é no presente, na experiência imediata, que é possível criar uma nova relação com a dor. Daí o Hineni. "Eu estou aqui" é uma vivência profunda de iluminação, potência e criação. Obrigado, Débora Colker (E a todas as pessoas que criaram e executaram uma obra de arte coletiva).

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Poetas e diretores de Psicodrama

 Chico Buarque em sua música Choro Bandido diz, à certa altura: "o poetas como os cegos sabem ver na escuridão. O poeta Thiago de Mello diz: "Faz escuro, mas eu canto". E isso nos ajuda em que no Psicodrama? Talvez em lembrar, sempre e sempre, que a condução de um grupo exige algo mais além que o conhecimento teórico. Exige algo da alma do poeta, da sensibilidade de perceber além do imediatamente iluminado, de, mesmo se tudo estiver escuro ou nebuloso, é possível se continuar. Mas esse continuar não é carregar o grupo nas costas. É usar sua sensibilidade poética em perceber além, para, junto com o grupo, escolher os caminhos.

terça-feira, 29 de março de 2022

1° de abril vem aí!

Aproxima-se o aniversário da data considerada inaugural do Psicodrama. 1° de abril de 1921. faremos agora 101 anos de nosso método de trabalho, do exercício dos fundamentos do Psicodrama como forma de ver, ler e viver o mundo e suas relações. Pois é isso o Psicodrama: muito mais que uma técnica, muito mais que um método. É uma Weltanschauung. Essa longa palavra em alemão quer dizer COSMOVISÃO. Visão do todo cósmico: Universo, Terra, Natureza e relações interpessoais. 

"Minha filosofia tem sido mal-entendida e desconsiderada em muitos círculos científicos e religiosos. Isso não me impediu de continuar a desenvolver técnicas provenientes da minha visão de como o mundo realmente deveria ser estabelecido. É curioso o fato de que esses métodos - Sociometria, Psicodrama, Psicoterapia de grupo -, criados para implementar uma filosofia fundamental de vida subjacente, têm sido universalmente aceitos, enquanto a filosofia é relegada aos cantos escuros das estantes da biblioteca ou de todo esquecida." J. L. Moreno

terça-feira, 15 de março de 2022

Chico e Nelson

 A leitura de um texto me estimulou a reler a peça de Nelson Rodrigues , de 1957, "Perdoa-me por me traíres". E, ato contínuo, pensei na versão cinematográfica de 1980, que tem a música de Chico Buarque "Mil perdões", na qual ele termina  dizendo: "Eu te perdoo por te trair". O título da peça de Nelson é dito pela personagem que se supõe traída. O verso da canção de Chico é dito pela personagem que trai, Saindo da peça e do filme, fiquemos apenas com o verso da música e o título da peça, "Eu te perdoo por te trair" e "Perdoa-me por me traíres". Se montarmos como um diálogo, seria:

- Suposto traído -  Perdoa-me por me traíres! (suplicando e culpabilizando-se) 

- Suposta traidora - Eu te perdoo por te trair! (enfaticamente condescendente e culpabilizante)

O que seria o esperado seria o traído poder ser clemente do alto de sua condição de vítima e a personagem traidora pedir perdão e humilhar-se. Mas a genialidade de Chico e Nelson iluminam, psicodramaticamente, os diálogos ocultos e subentendidos. Explicitam, desvelam. Em cena psicodramática talvez esse diálogo desvelador estivesse na boca dos Egos Auxiliares que, em Psicodrama, podem fazer esse contraponto que chamamos de Duplo ou Dublagem.

quinta-feira, 10 de março de 2022

luzes, cenários

Tenho pensado muito sobre o efeito do cenário e iluminação sobre o palco. Claro que, para quem é de teatro ou cinema, isto não é dúvida. É certeza. Mas trazendo para o nosso universo psicodramático talvez não seja tão óbvio assim. O nosso palco real é o mundo, é o nosso corpo. O palco numa sala ou num espaço qualquer é uma representação analógica do nosso mundo/corpo. Se aquela dúvida inicial for trazida para essa nova referência o que seria cenário e iluminação, então? Cenário seria o pano de fundo da sociedade onde viva o protagonista. E nesse caso pode haver, e há, cenários superpondo-se a cenários: mundial, nacional, regional, familiar e outros mais que possam ser identificados. A iluminação corresponderia ao clima afetivo do entorno, o zeitgeist. No palco teatral o cenário é comentário, ambientação, localização de onde se passa a cena, sugestão. No palco teatral a iluminação é um narrador e comentarista, um reforçador da cena, um indicativo, um criador de clima afetivo. No mundo psicodramático podemos montar esses múltiplos cenários e luzes atravessadores e constituidores do protagonista. Se tudo isto que dissemos sobre cenário e luz trouxermos para o palco psicodramático, abre-se um portal para sairmos de uma visão exclusivamente subjetiva, solipsista (eita !) e passarmos a ver a pessoa dentro de cenários múltiplos e iluminações cambiantes.

terça-feira, 1 de março de 2022

profissional, amador e aquecimento

 Enquanto me preparava para escrever agora me dei conta que não tinha motivação para escrever, estava sem vontade de escrever. Então, pensei quantas vezes  isso acontece em outros papéis de nossa vida? E quando Condutor de Psicodrama quando está sem ânimo para dirigir um grupo? E se o psicoterapeuta não está em seus melhores dias para a sessão psicoterápica? Einstein dizia que o Gênio é resultado de 1% de inspiração e 99% de transpiração. Talvez aí resida a diferença entre o que se chama de profissional e amador. Talvez o que se chama de amador é aquele que todo o tempo depende de motivação, de inspiração. Antigamente, em minha infância, diferenciamos o jogo de brinca do jogo a vera. Um. de brinca, jogávamos sem compromisso. No jogo a vera era de verdade (a vera!), se perdia ou ganhava, efetivamente, a gude ou a partida de futebol ou ping-pong. Então, ao começar a escrever, estava me aquecendo para o meu papel de escritor de blog, falando das dificuldades e ao mesmo tempo exercendo meu papel. O aquecimento no Psicodrama é o preparação do grupo ou da pessoa para os próximos passos de grupalização e dramatização. Nem o agrupamento de pessoa ainda é um grupo nem a pessoa está à vontade para uma dramatização. Em todos os papéis que desempenhamos na vida é necessário o aquecimento, as coisas não estão prontas, a inspiração não tem hora marcada. Assim ao iniciarmos o desempenho de qualquer papel em nossas vidas podemos fazer como todos os profissionais fazem: Começam fazendo, não esperando a vontade de começar a fazer.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

seriedades

Mais uma vez aprendendo com pacientes. Em um momento, veio à tona a palavra seriedade. aplicada  ao exercício da atividade profissional. "Sou um profissional sério". E aí me veio um questionamento/reflexão. "O que ele está definindo como sério?". Poderia ser  sério no sentido de comprometido e responsável ou poderia ser sério como sinônimo de sisudez, de "não brincar em serviço?". Lembro-me de uma capa da revista Chico Bento de Mauricio de Sousa (Ela está plastificada e anda comigo!). Não sei se conseguirei formar a imagem com as minhas palavras. Na capa estão Chico Bento e o pai. Na roça, trabalhando. O pai de Chico cavando o solo. E Chico Bento, em primeiro plano, cavalgando uma picareta como se fora um cavalinho, abanando o chapéu de palha, um sorriso largo no rosto. E a terra estava sendo trabalhada. Ele estava seriamente comprometido com o trabalho, cooperando com o pai. E não estava sério, sisudo, pesado, sofrido. Ele sorria e executava sua tarefa. Moreno, criador do Psicodrama, insistia de que o riso era tão importante quanto o choro. A alegria não pressupõe fatuidade (palavra complicada significando frivolidade, insensatez). Entretanto, no senso comum, "muito riso, pouco siso". A seriedade, ser sério, é pouco riso. Mesmo em nossa área, em Psicodrama, Psicologia, Psiquiatria, o riso não é bem visto. As catarses sempre levam a supor choro e dor. O riso catártico, aberto, destruidor de mitos e cristalizações, não é bem visto. Seriedade é compromisso e não sisudez. O riso e o choro são lados da mesma moeda, mas, às vezes, o riso pode ser mais libertador que o choro cristalizado e já conservado. 

"Moro em minha própria casa

Não imito ninguém

Rio-me de todos os mestres

Que nunca se riram de si"     NIETZSCHE

domingo, 6 de fevereiro de 2022

maturidade?

Pensava aqui com os meus botões como a maturidade afetiva, a madureza relacional, anda dissociada da maturidade intelectual. É tão frequente ver-se pessoas com conhecimento técnico, informações culturais, mas com atuação imatura, infantil. É curioso, mas a nossa cultura ocidental não privilegia, não estimula o amadurecimento afetivo. Há treinamentos, adestramentos, cursos para a área intelectual. Mas parece que há uma ideia subjacente à todos que o crescimento, o envelhecimento, traga junto o lado afetivo, "naturalmente". E a parte afetiva de nossa vida mental é quem nos dá a o modo de agir adequado, é quem possibilita o adequado desenvolvimento da espontaneidade e da criatividade. Sócrates, mestre da  filosofia grega, tinha um relacionamento bastante conturbado com sua esposa Xantipa. Então, se o desenvolvimento intelectual, a solidez cultural, a profundidade de pensamento, não levam à maturidade afetivo-relacional, o que o faz? Penso que o passo adiante foi dado por Moreno quando propôs o conceito de Tele: a condição relacional em que os envolvidos se reconhecem, na relação, com o mesmo sinal e intensidade de aceitação, rejeição ou indiferença. A inversão de papéis na relação propicia que conheça a relação do ponto de vista do outro. Acrescentando à visão e percepção próprias, a visão e percepção do outro:
"Então verei você com os seus olhos
E você me verá com os meus olhos".
Talvez, ainda assim talvez, a relação vincular possa atingir o estágio de maturidade em que, os os vinculados, possa mutuamente se fertilizar e crescer e gozar do encontro.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

"Eu sou egoísta"

 Na letra de "Eu sou egoísta", de Raul Seixas, há este verso: " O que eu quero é o que penso e o que faço". O pensar, o querer e o agir são as três vertentes de nossa aproximação ao mundo. Pensamento, Sentimento, Ação. São os nossos três braços que fazem o nosso mundo. Jnana, Bahkti, Karma: as três portas do templo. Afetividade, Cognição, Volição. Os Gregos deram o nome de Harmonia à filha de Ares (deus da guerra, violento e sanguinário) com Afrodite (deusa da beleza, amor). Então harmonia é o modo de conciliar, "harmonizar", opostos, contrários ou diferentes. Harmonizar o vinho com a comida é encontrar um ajuste "harmônico" entre o sabor do vinho e o sabor da comida. Parece que apenas a palavra "Harmonia" consegue transparecer o sentido e o conceito dela própria. Os sinônimos gramaticais não são sinônimos poéticos e, muito menos, existenciais. O que o Mestre Raul diz em sua letra é que o que ele quer (afetividade, desejo) corresponde ao que pensa (esfera cognitiva, nossos conceitos) e se ajusta à sua ação no mundo. Isso é harmonia. A minha harmonia. E, talvez por isso, Raul tenha intitulado de  "Eu sou egoísta". Mas, isto, tanto o santo iluminado quanto o pleno sacana podem sentir. Sentirem-se harmônicos, sem angústia, sem conflito, sem ruídos de engrenagem. Então, a essa harmonia entre as esferas da afetividade, cognição e ação há que se juntar, para separar o  pleno sacana do santo iluminado, a esfera ética: o modo como me conduzo em relação aos demais, como a minha harmonia pessoal não desarmoniza a harmonia do outro. Como a minha harmonia pessoal pode conduzir à harmonia do outro. Os Hindus tinham o conceito do Bodhisatva, aquele que desiste de sua iluminação pessoal, de alcançar o estágio de Buda, para permanecer entre aqueles que precisam de ajuda. O Psicodrama comporta a  esfera de ação clínica (O Psicodrama, propriamente dito), ação com grupos de papéis sociais (Sociodrama) e o Axiodrama, a nossa vertente que explora, revela, faz aparecer, a dimensão dos valores éticos. A verdadeira sabedoria é que a que ultrapassa a harmonia pessoal para fazer germinar a sabedoria grupal, coletiva.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Pensar e não pensar

Tenho visto, circulando pelas redes, anúncios dirigidos à médicos e psicólogos, que contém esta, ou similar, expressão. "Nunca mais você vai precisar pensar mais no que postar todos os dias". Interessante. Nossa evolução biológica nos levou ao pensamento. Isto se transformou, até onde sabemos, no apanágio da espécie humana. Pensar, ponderar, planejar, escolher, decidir. Agora, vemos este apelo para o não precisar pensar. Apenas postar. Comprar um app e postar o que ali está. Para que pensar?  A que leva o não pensar? O que seria não pensar? As redes sociais favorecem e amplificam a impulsividade. A resposta sem pensar, movida apenas pela reação emocional. O nosso  pensamento, o refletir, o decidir, necessita de um intervalo de tempo entre o estímulo e a resposta. Nas dramatizações psicodramáticas é possível observar o que chamamos de espontaneísmo, a resposta impulsiva. Então temos o recurso de pedir ao protagonista que volte a cena, repita as mesmas ações, mas em câmara lenta. E aí podemos tornar sensível o conteúdo das ações, que estava, até ali, submerso na impulsividade. Espontaneismo é impulsividade, é ação sem conteúdo. Espontaneidade é ter a possibilidade de escolha, criatividade é fazer a melhor e adequada escolha para a cena, para a vida.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

emocional e cognitivo

O Psicodrama e todas as ferramentas Socionômicas (Sociodrama, Axiodrama, Teatro Espontâneo) têm ações similares. Aquecimento, dramatização e compartilhamento. E na dramatização acontece, sempre, um ir e vir entre objetivar o que está subjetivo e subjetivar o que foi anteriormente objetivado. Traduzindo melhor. A dramatização é a concretização em cena de algo que está rolando subjetivamente. Mas, após a dramatização, para o protagonista e para o grupo, torna-se importante e vital, que a cena seja metabolizada. E com isso, produzindo novas cenas e novas percepções de cena. E com isso, cada dramatização torna-se aquecimento para a próxima cena. Essa contínua troca faz do Psicodrama algo sui-generis. Não é apenas vivência nem apenas dramatização catártica.  O ir e vir permite que saiamos do apenas emocional e do apenas cognitivo. As ferramentas psicodramáticas produzem essa possibilidade, mas é a condução psicodramática com esta visão que transforma tudo isso em Psicodrama.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

papéis, vínculos e estradas

 O Psicodrama, toda a família socionômica, é uma abordagem relacional. Portanto, pressupõe, como dizia Moreno, que somos seres em relação. E, para Moreno, essa relação se dava por meios de papéis. E papel, psicodramaticamente, é a forma com que cada um assume ao estabelecer a relação. E essa forma, esse papel,  codifica um discurso, um gestual, uma forma de falar, tal qual o papel cênico. E, isto faz Moreno dizer, ser o papel a forma tangível do Eu. Ou seja, não acessamos o Eu do outro diretamente, mas, sim, intermediado pelo papel. Tangível é aquilo que pode ser tocado. O papel pode ser tocado. O Eu do outro,  não. Então, haverá tantos papéis quanto vínculos que estabelecemos. Então, haverá pessoas com poucos papéis desenvolvidos, enquanto outras terão múltiplos papéis, múltiplos vínculos. Assim, no Psicodrama histórias psicodramatizadas sempre serão histórias relacionais, sempre explorando os papéis envolvidos, sempre pesquisando a gênese dos papéis. E se, naquela relação, a relação é télica ou não télica. Ou seja, relação télica é aquela em que os envolvidos se reconhecem como estando na mesma estrada, ou caminhando no mesmo sentido ou em sentidos contrários, mas, reconhecendo estar na mesma estrada. A relação será não télica quando estão em estradas diferentes e não sabem disto, ou então, estando na mesma estrada as percepções de encontro são diferentes: um está se distanciando e o outro o julga se aproximando.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

O Psiquiatra


 Hoje comemoramos a data de nascimento, em 1872, de Juliano Moreira, fundador da Psiquiatria brasileira. Baiano de Salvador, filho de português funcionário público e negra, empregada doméstica. Forma-se em medicina com 19 anos, trabalhando com Doenças Tropicais, campo em que a Bahia era líder, na época. Torna-se poliglota, com 24 anos entra como auxiliar na cadeira de Moléstias Nervosas e Mentais da Faculdade de Medicina da Bahia, embora se temesse que pudesse ser preterido por ser negro. É pioneiro, na Bahia, de punção medular para estudo de Sífilis. Tem intensa atividade científica, nacional e internacionalmente. Em 1903 assume a direção do Hospício Nacional de Alienados. É aí que sua contribuição torna-se imensa. Humaniza o atendimento e as condições de internação dos pacientes, institui oficinas de aprendizado de ofícios e, também e principalmente, oficinas artísticas. Inicia sua luta contra as teses racistas e eugênicas que explicavam as doenças assim chamadas nervosas e mentais como fruto da miscigenação racial. Insiste em atribuir os males mentais às condições sociais e sanitárias. Por razões políticas da Revolução de 1930 é exonerado do cargo. Morre aos 61 anos, de tuberculose, em 03 de Março de 1933.

Postagem em destaque

E assim é.

Experimentar e refletir.  Este blog é um espaço para mostrar ideias sobre o psicodrama, sobre o teatro espontâneo.  Há mais de trinta anos...